Urubu Cultural

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sábado, 12 de setembro de 2009

O Menino Bombazine


Certa noite num qualquer dia de Inverno deparei-me numa sala de partos. Não sei como lá cheguei, e mais curioso ainda, parecia que não estava em mim. Sentia o meu corpo como se nada de errado se passasse. As pernas, braços e tronco e restante matéria que me identificava enquanto ser. No entanto sentia-me exageradamente leve, como se não tivesse peso algum. Era como se o meu corpo estivesse diluído e transmutado nas paredes, como se pairasse no ar, como uma qualquer entidade.
De súbito a sala encheu. Enfermeiras e médicos em apressado passo transportavam uma maca e na mesma estava uma mulher coberta com um fino lençol branco.
A mulher gemia e soprava, encharcada em suor, em contínuas contracções. Estava prestes a dar à luz, era uma questão de minutos.
O pessoal médico transferiu-a para a marquesa, havia grande azáfama. Curiosamente fui de todo ignorado. Talvez fosse invisível, ou enquanto matéria de ar limitava-me a planar e a observar sem interferir de todo. Um espectador anónimo… Estendida na marquesa, a mulher gritava agressiva e inquieta; de olhos revirados, clamava por ajuda. Uma nova vida prestes a chegar a este mundo. Presumo que seja o epítome de glória e sensação de alegria.
O médico abriu-lhe as pernas; senti-me desconfortável com aquele momento de intimidade voyeurista… era bela e atraente… de carnes de volúpia, de generosas formas, de róseos lábios.
Apercebi-me que se preparavam para efectuar o parto, aproximava-se o momento em que retirariam a criança do ventre da mulher. Esta tinha pouca dilatação vaginal, o colo uterino contraído…
Senti um crescente clima de medo e nervosismo; a grávida mexia-se irrequieta, com as pernas desnudas em contorcidos espasmos. Enfermeiras tentavam controlar-lhe os membros e impedi-la de se magoar. Ela continuava em impetuosos movimentos…
O obstetra colocou luvas de látex e enquanto as enfermeiras tentavam suster as pernas da paciente, o médico inseriu as mãos dentro da vagina, penetrando-a até aproximadamente metade dos seus braços, deixando somente os cotovelos de fora.
Em breves instantes retirou a cria de dentro da mulher. Trazia-a aninhada confortavelmente por entre as palmas das mãos, segurando-a firmemente.
O bebé não tinha quaisquer formas humanas. Nem braços, nem pernas, tronco, cabeça, ou olhos. Rigorosamente formato algum que pudesse indiciar de que se tratava de um espécimen da raça Humana. As formas eram irregulares como se tratasse de uma vil e nefasta partida de Deus ou da Natureza. Era um simples conjunto de retalhos com formas pouco geométricas, no entanto talvez arriscasse dizer que teria algo que se assemelhava a um formato quadrangular. Era um naco de tecido, desorganizado, como se um tecelão apressado tivesse cortado um longo pedaço. As carnes eram têxteis; em tons azuis, muito claros, como o céu logo pela manhã... parecia ser de algodão; aspecto suave, de riscas caneladas, de pêlo, com sulcos e textura em relevo, paralelo ao comprimento das formas daquilo a que apenas poderei qualificar de criatura, ou ser vivo.
O médico carregava a criatura nos braços, ainda algo suja de sangue, talvez da mãe, ou dela própria… a cor meio esbatida com a estranha mistura entre o vermelho do sangue e o azul da pele.
Apercebi-me de algo que me escapou durante a primeira abordagem… algo que atenuava de certo modo o festim grotesco que se presenciava na sala de partos. Algures no tecido azul com relevo, riscas paralelas e padrão distinto, a uma curta distância horizontal entre si, jaziam dois grados botões inexpressivos, igualmente azuis, mas com alguma diferença do padrão do restante corpo da criatura. Era uma tonalidade ligeiramente mais escura, o que se evidenciava e tornava perceptível. Pareciam olhos, apesar de não lhes reconhecer quaisquer íris ou retina. Estavam colocados à distância a que, presumo, seria normal se estivessem num qualquer rosto humano.
Apesar de não efectuar qualquer movimentação ou expressividade, havia algo naqueles botões… estavam vivos e percepcionavam ao seu redor.
Apercebi-me então que o tecido em relevo, bombazine movia-se em sucessivos compassos, o têxtil respirava em breves suspiros… agora sim, tinha a indelével certeza de que era uma entidade viva.
O médico preparava-se para colocar a criatura dentro de uma incubadora, elevando-a e segurando apenas com a ponta dos dedos, com extrema cautela. Enquanto duas enfermeiras se apressavam a ultimar os preparativos para colocar o ser dentro do dispositivo, uma terceira tentava controlar a mãe que continuava a espernear violentamente, tentando reclamar para si a cria nos seus braços.
O têxtil movia-se irrequieto nas mãos do médico, como um recém-nascido que acaba de chegar a este mundo; apesar de não ter pernas ou braços e o inquietante silêncio provocado pela ausência de boca que permitisse que expelisse um qualquer choro.
Enquanto o obstetra segurava a criatura de bombazine nos braços, notei algo que de certa forma o humanizava.
Não lhe reconheci nada de minimamente humano aquando do avistamento inicial. No entanto, e enquanto perscrutava as suas formas, comecei a reconhecer gradualmente alguns traços, que, apesar de praticamente mínimos ou inexistentes aproximavam a disformidade de bombazine a um legitimo bebé humano.
No reverso do têxtil azul com riscas em relevo havia uma paleta de cores, como se fossem pinturas na parte de trás do tecido. Mas não… não era algo pintado nas carnes de tecido … sobressaíam…eram… órgãos… órgãos humanos.
Pareciam estar cosidos à bombazine e funcionando com aparente normalidade, apesar de se verificar a ausência de alguns deles. Tratava-se da caixa torácica do bebé, aparentemente bordada na parte traseira do têxtil vivo.
Não tinha ossos alguns, e pelo que depreendi e apesar de não ter grandes conhecimentos de biologia ou medicina, aparentava ter pulmões e coração.
Reconheci igualmente, alguns centímetros abaixo, aquilo a que presumi tratar-se do estômago, intestinos, rins e bexiga.
A mãe gritava furiosa, exigindo que lhe mostrassem a cria; ansiava por tomá-la nos braços, processo instintivo e humano de quem acaba de trazer um ente ao Mundo.
O pessoal médico tentava evitar e protelar entregar o bebé disforme, dotado de múltiplas anormalidades e alterações congénitas.
No entanto o clamor da maternidade e do instinto humano exigia tomar no corpo o fruto gerado no ventre. Fosse fruto do amor, do desejo ou de uma mera noite de intenso volume copular, a mulher estava no intrínseco direito de abraçar o filho.
Não havia mais o que protelar; de imediato e antes de colocar o têxtil na incubadora, o obstetra tomando a criatura nos braços, aproximou-se da mãe e entregou-o, fazendo com que o tecido de bombazine repousasse no colo da progenitora.
A mulher esboçou um largo sorriso de orelha a orelha e abraçou o filho, ainda que com cautela e temor, pois desconhecia como haveria de o pegar, sem que desta forma causasse dolo ao objecto de incondicional afecto.
As formas quadrangulares de tecido irregular começaram a apresentar um tom mais escurecido, circular e a aumentar, uma extensa mancha húmida na superfície das carnes têxteis. O bebé acabara de urinar.
De seguida a mulher aproximou-o do peito e começou a sentir uma certa agitação… esta estava semi nua; ostentava somente uma camisola de dormir.
O bebé mexia-se e as suas formas começavam a indiciar um relevo que parecia acercar-se dos seios da mulher. Umas das alças da camisola descaiu suave e pausadamente pelo ombro abaixo, revelando um dos seus pequenos e túrgidos mamilos.
O tecido dirigia-se para o mamilo; era como se a estrutura azul e de riscas paralelas formasse uma boca inexistente e procurasse alimento no seio da mãe.
O tecido tocou na ponta do mamilo rosado e endurecido… a mãe soltou um lânguido sinal de esgar e dor enquanto sentia que o seu filho, o seu menino de bombazine começava agora a se alimentar.
Iniciou-se de seguida um progressivo e extremamente doloroso processo que durou várias horas. Paulatinamente, o bebé começava a ganhar formas. O têxtil transmutava-se em formato humano.
Como tecido cautelosamente recortado com medidas precisas, a criança transformava-se num bebé dotado de pernas, braços, tronco e cabeça.
A boca desenhada no rosto ganhava relevo; azulada e expressiva. O processo de formatação física prosseguia, agora com um intenso e enervante choro; que por vezes soluçava e cessava, enquanto chupava um pouco mais de leite do seio da mãe.
E assim findara. Agora, o menino não era mais um naco de tecido irregular e sim um bebé de cinquenta e nove centímetros, quatro quilos e novecentos gramas.
Não tinha pele, ou reformulando, não tinha carnes e tonalidades reconhecidamente comuns ou humanas.
Mantinha a sua cor azul muito clara, com carnes têxteis; aspecto suave, de riscas caneladas, textura em relevo. O processo de transformação não o dotara de olhos assertivamente humanos. Os grados olhos azuis mais escuro permaneciam, inexpressivos…
E assim era este menino, a riqueza dos olhos da mãe. O menino bombazine, de pele fofinha e macia, olhar desumano e sequioso de leite.

1 comentário:

  1. Primo, chamo-te a atenção para um erro, que concerteza te passou despercebido, aquando da redacção do texto, e que é o facto de a Humanidade não ser uma raça, mas uma espécie, a raça é uma subdivisão da espécie.

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