Urubu Cultural

Urubu Cultural

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Suicida Imortal


Estava de tal maneira enfadado com a sua existenciazinha mísera e parola que não via nada à frente dos olhos. Uma espessa cortina de um fumo obscuro moldava-lhe a visão, encurralava-o em cadeias de betão. Passava horas palpitante, ansioso e ansiando; em busca de uma certa ideia de paz reconfortante que aquietasse o coração. Sentia arrepios, ideias de espasmos enfurecidos que coçavam nas costas, como unhas gigantes e irrequietas que acariciavam o mais ínfimo da mente. Seus dias eram passados acompanhado do nada, um amigo de anos que já não lhe trazia tanto prazer ao desfrutar de sua companhia como outrora. Em silêncio desfrutava de horas sentado a uma cadeira de um qualquer escritório como tantos outros, colado a uma berma de uma estrada de calçada por onde outrora e em tempos distantes passavam inúmeros transeuntes e igualmente carros. Nesses tempos idos, a rua era movimentada, azáfama, conversas e vozes, olhares que passeavam, corpos deambulantes. E ali ficava, só, diante de material de escritório; jogava com o intelecto, uma luta voraz entre a racionalidade pragmática e a subserviência imbecil. Certo é que a subserviência sempre vence. Por vezes fugia para ideias fantasiosas de algum futuro de interesse, o retorno à realidade era a mais vil actualidade. O quotidiano enfurecia-o, as actividades automatizadas, atender telefones, enviar faxes, imprimir documentos; esta nefasta ideia de agradabilidade e gratidão... Lutava entre uma ideia de rectidão e atitude correcta e um desejo queimante de algo mais. Eram semanas em que vivia por entre o veneno vociferante, praguejava entre dentes, amaldiçoava a vida, suspirava, como se o sôfrego sopro da insuportabilidade em tolerar o afastasse do mar de Nada e de completa idiotice despropositada onde vivia encharcado. Todos os dias apanhava chuva. Uma violenta trovoada acompanhada de relâmpagos, de água escura, como um óleo putrefacto. Tinha as carnes sensíveis, diria até fracas e adoentadas; a água entranhava no corpo, espalhando uma bactéria virulenta que alastrava por todo o seu ser; pior que se alojava na cabeça, sem solicitar a devida permissão invadia o intelecto de tal forma que varria tudo que por lá estava. O sossego era uma mentira, o conforto um deboche de absurdo quilate. O corpo desanimava, a mente vazia, no entanto não tenhamos ilusões, era um vazio que pesava. Como um cadáver respirante, tudo questionava, o pensamento estava desorganizado, estava só... O sentimento de solidão é comum a todos, mas neste caso específico era diferente; algo que afecta maiorias, poucos a constatam com certezas. A cidade era composta por duas ruas, nem mais nem menos... cimentada de calçada e calor que não cessava. Acompanhavam-no pessoas de cartão, feitas de carne e osso, de sangue e artérias, mas que não eram mais que humanos cartolina. Vivia-se um clima de acefalia, retrógrados e preconceituosos, com suas ideias e sofismas concebidos e enraizados, impossíveis de vergar. Respiravam para o stress, o nervosismo a confusão, a pressa, o vício e ansiedade... Andavam com o coração por entre os dentes, oito horas diárias, quarenta horas semanais; só haviam duas propostas: ou o stress ou o ócio; fascínio e interesse nem pensar. Não havia um propósito, uma justificação que o fizesse pulsar; era uma espécie de sonolento que se arrastava entre um ponto e o seguinte. E assim tinha que ser, nem sequer havia uma plausibilidade ou um motivo táctil, era como algo que sempre se soube e tomou como certo e assim permaneceria. Era um fraco, cobarde, incapaz de reagir e combater adversidades, um morto vivo social que era levado pelas correntes. Certo dia nublado, de céu amargurado, sentado diante de uma mesa a proceder a uma qualquer actividade inútil e de importância inexistente, ponderou cautelosamente pôr cobro a aquilo que considerava uma gigantesca perda de tempo. Ponderou sim, terminar com sua própria vida. Fosse este homem dotado de algum espírito de auto crítica ou da mais elementar percepção dos mecanismos que compõem a própria existência humana, teria constatado que o tédio, as rotinas quotidianas da mesmice são condição indissociável do que genuinamente significa viver. No entanto estava decidido, conceito algum poder-lhe-ia vergar a sua firme vontade em se auto extinguir. Numa tarde idêntica a tantas outras dezenas, centenas e milhares… após conclusão das tarefas às quais tinha que se dedicar por uma mera questão de sobrevivência, pegou num lápis, instrumento mor das actividades de escritório, e com este furou a sua própria jugular. Da mesma jorrou um espesso e intenso jacto de sangue, como um adorável riacho… Ainda aguardou alguns minutos, uns quinze ou vinte, talvez. Sentado à mesa… nada sucedeu. Sobrevivera. A ferida continuava, é certo, o sangue navegava inquieto pelo seu pescoço abaixo, repousando na fina camisa branca e de impecável trato. Estava manchada com um padrão bourdeux que muito lhe favorecia o aspecto banal. Não estava morto, tinha certeza… no entanto o tédio ali estava, abraçava-o como uma amante carinhosa e possessiva, daquelas que se colam à entidade tutelar do amor, como se nada mais existisse no espaço ou na Terra. Ali continuava só; fitava a rua para lá da jaula de vidro do espaço onde estava refém. O lápis não surtiu qualquer efeito, apesar das incomensuráveis dores que o acto de romper a jugular lhe provocara. Estava calor, imenso, angustiante… observou obsessivo a máquina de café que repousava numa pequena mesinha à entrada do escritório. Abriu um armário e retirou uma saqueta de pó de café e um copo. A rua estava vazia, uma ou outra pessoa passava esporadicamente e pouco mais. Encaminhou-se rumo à máquina de café e começou a preparar um, deixou aquecer a água o máximo que pôde, até que queimasse. Estava exageradamente quente, ao ponto de quase derreter o diminuto copo de plástico onde o líquido repousava, aguardando que o bebesse de um trago. Pegou no mesmo, não sem antes pingar o chão de pequenas gotinhas e quase queimar os dedos. A ideia agradou-o. Queimar os dedos… no entanto não seria o suficiente para que cessasse de existir. Oohhh mas o tédio… nem sei dizer se seria inteiramente fruto da mente deste homem, se de facto existiria alguma espécie de estranho e malévolo vírus que pairava sob aquela cidade, ou rua em particular. As pessoas são naturalmente enfadonhas, é algo intrínseco à sua natureza… Neste mundo presente e actual não existe diálogo, conversas revestidas de genuíno interesse ou reflexões profundas sobre matéria alguma. Quotidianos bocejantes de actividades automatizadas e robóticas… Serão cyborgs, serão zombies, cadavéricos fantasmas de ociosas vontades e de infrutíferos esgares, de palavreado oco, de obsessões empresariais e servis. Aquela rua em particular vivia e respirava comércio, serviços, dinheiros, tudo aquilo o irritava profundamente, muito para lá dos limites do razoável. Era homem de extremos… é certo. Existem vários mecanismos de despiste e engano do tédio e do vazio da inactividade; ler um livro, fazer palavras cruzadas, escrever um poema, navegar na Internet… mas nada destas opções se lhe apresentava como minimamente válidas. Exigia fascínio, um genuíno senso de importância, de exponenciar as suas reais capacidades e desígnios, ansiava por criatividade, pelas artes do cinema à música; a parolice do quotidiano devorava-o visceralmente. Manteve-se impávido à porta do escritório enquanto beberricava o café; olhava o exterior, os demais escritórios que ornamentavam a rua por aproximadamente uns bons oitocentos ou novecentos metros. Ao lado do seu posto de trabalho estava um escritório com duas funcionárias; nunca soube, nem tão pouco se deu ao trabalho de inquirir qual o negócio que o mesmo tratava. Essas noções eram de todo irrelevantes. Igualmente com montra de vidro, qual voyeur via-as e elas o viam a ele; cumprimentou-as com um breve aceno e um sorriso melancólico. De certo teriam visto o espectáculo suicida que tinha apresentado minutos antes, bem como os funcionários dos escritórios vizinhos, todos eles com montra de vidro; eram como um jardim zoológico de masmorras transparentes em que tudo se presenciava. E assim corriam as horas, o calor insano e sufocante, labiríntico e claustrofóbico. O clima era uma ironia a que nem estes peões do tédio se davam conta. Chovia sempre pela manhã, cronometradamente. Entre as sete e as nove, a chuva intensa caía tempestuosa; depois o dia era um inferno cavernoso de temperatura intransigente. Não haviam clientes nesta rua, esta já é uma verdade mais que debatida, o expediente limitava-se a um prolongar de pequenas actividades, ora pacientes ora impacientes, ora tolerantes ora angustiantes. Curioso verificar estes fragmentos de presente, rotineiras amostras de um qualquer prolongar… uns tentavam enganar o tempo, outros nem precisavam, pois o tempo não era de modo algum um inimigo. Outros havia (como o caso particular deste homem em concreto) em que o tempo era um torturador, um arauto de desespero. Concluiu a ingestão do café; continuava a observar a rua… nada se passava, como era óbvio e uma mais que conhecida verdade indesmentível. Encaminhou-se rumo ao armário onde estavam guardadas as saquetas de café; tencionava preparar mais um, no entanto desta vez não tinha como intuito bebê-lo. Não… de todo, desta vez a intenção seria outra. Assim o fez, repetiu a rotina que procedera minutos antes, voltou a queimar os dedos, gotinhas gotejaram no soalho. Por fim jogou o café sobre a cabeça. Escaldava de tal modo que era mais que certo que lhe corroeria o coiro cabeludo, esperando quiçá que seus miolos derretessem perante o contacto com o delicioso néctar. Em circunstâncias comuns esta expectativa seria mais que cumprida, no entanto os seus planos voltaram a fracassar. Os níveis de absurdo e frustração de toda esta situação roçavam os píncaros nefastos do ridículo. As dores, essas eram inqualificáveis. Ainda nem sequer se refizera do penoso martírio que sentiu ao perfurar a jugular com o lápis; agora sentia as carnes a derreter, o líquido engolia-lhe o cérebro. O mais delicioso odor é o de um café acabado de fazer, os grãos que fervilham, um amável aroma perfumante. Este misto de profunda dor física com a inquietação do fracasso entristecia-o profundamente. Estava condenado a ser uma formiguinha de trabalho, ainda por cima incapaz de se auto extinguir. Mas não desistiria… afinal apenas falhara por duas ocasiões. Da próxima… sucesso, era garantido. Assim tinha que ser. Os colegas funcionários de escritório prosseguiam com suas rotinas individuais; uns conversavam, outros jogavam à carta, entretinham-se ao computador ou a conversar ao telefone. Alguns até esporadicamente tinham algum trabalho genuíno entre mãos, fosse enviar um fax ou responder a um e-mail ou até fotocopiar documentação diversa. Um deles, empregado de uma empresa contígua, notou que algo de diferente se passava na rua. Algo que desafiava as normas do quotidiano, que insistia em fugir às regras estabelecidas, regras essas que assentavam em cópias miméticas da realidade, fosse passado, presente e futuro inclusive. Trabalhava neste local há cerca de três anos; o patrão aparecia raramente no escritório, ora para deixar cheques para pagamentos, ora para se assegurar que o negócio se encontrava completamente parado e às moscas, enfadonho e mundano como sempre. Havia uns bons seis meses em que a empresa não facturava absolutamente nada, como de resto era o epítome da realidade presente. Na última semana de cada mês recebia o seu mísero ordenado. Não mais que algumas notas, suficiente para uma média de sessenta refeições mensais na cantina ao fim da rua, pagar a irrisória renda do seu pequeno apartamento T1 situado num pequeno condomínio no aglomerado ao lado da rua dos escritórios. Era uma pequena cidade de comércio e indústria, de negócios e negociatas, de dormitório para funcionários de fatiotas impecáveis e engravatados, de fulanas jeitosas com suas saias pelo joelho, de salto alto polido e casaco com camisolinhas decotadas. Continuava a ser vigiado pelos outros “animaizinhos de escritório”, como gostava de os tratar; observavam-no das suas gaiolas de vidro, alguns atreviam-se a atravessar a soleira da porta e espreitavam. Nem se deu conta que alguns se aperceberam das suas tentativas frustradas de suicídio. Continuou a tarefa à qual resoluto decidiu investir todo o seu tempo daquele dia em particular. Não apareceriam quaisquer clientes para o importunar, o patrão não deveria aparecer tão cedo e os demais indivíduos das lojas ao redor nunca tinham transposto o limiar da sua porta sob pretexto algum, portanto não haveria nada que o perturbasse. Procurou um pequeno pano num dos armários, havia um saquinho com vários mesmo ao lado das saquetas de café. Retirou um e limpou a cabeça, metade do rosto, o pescoço, e tentou disfarçar as nódoas na camisa. Uma nova ideia fervilhava-lhe na mente...Apressou-se enervado a perscrutar as gavetas das escrivaninhas. Lápis, post its, canetas, agrafadores, x-actos...e uma gravata... Era obrigado a trabalhar de gravata, politiquices empresariais que em nada contribuíam para o sucesso financeiro, mas por uma questão de etiqueta e decoro social cumpria as directivas automaticamente. A primeira actividade que efectuava pela manhã ao chegar ao trabalho era livrar-se da apertada gravata que quase o sufocava. Curiosamente seria a mesma a ferramenta de mais uma tentativa de extinção. Depressa colocou a gravata ao pescoço e fez um nó tosco e desengonçado… A correcção do mesmo não era uma questão válida na equação. Estava ansioso e expectante, como uma criança que investe várias horas numa brincadeira ou num projecto escolar com afinco. Curiosamente a maior das certezas, a vontade em culminar com a sua própria existência, findar com todo aquele tédio sufocante que o martirizava por meses e meses, deixara de ter uma importância genuína ou sequer perceptível e compreensível. Sempre se julgara intrinsecamente incompetente, incapaz de obter sucesso nas mais variadas áreas da génese humana ou social. A sua impossibilidade em morrer apenas lhe mostrava para além do limite de quaisquer dúvida, que era sim, com certezas factuais, um imbecil sem valor algum. Os vizinhos nas suas respectivas masmorras de vidro prosseguiam as actividades contratuais, aguardando pacientemente o término de mais um dia e trabalho. Tinha um pequeno esgar sorridente por entre os lábios, alguma confiança quiçá, o que era um contra censo para alguém que sempre acreditara que valia pouco mais do que nada. Estava no limite. A frustração atingira o píncaro máximo. Movia-se apressadamente de um lado para o outro no pequeno cubículo, como um rato de laboratório aprisionado num labirinto experimental, fitando o delicioso naco de queijo. Estava mais do que na hora para mais uma tentativa. Sentia-se confuso e ridículo. Não com a completa tolice que circundava as suas actividades recentes e o absurdo de toda a situação, mas com o facto de continuar a fracassar. Não lhe incomodava de modo algum que pessoas à sua volta estivessem alerta para as suas vãs tentativas de suicídio. Perdera vários minutos a divagar… preciosos minutos. No entanto não perdera a concentração e o afinco necessário para estabelecer uma nova meta. Colocou-se de frente para a máquina de fax. Ligada, e com várias folhas brancas, empoeirada em sossegado descanso. Havia meses que não era utilizada. Abriu uma gaveta e retirou a agenda de contactos do escritório. Era de todo desnecessário, mas deveria ser algum mecanismo automático, algo reflexivo ou então algum estranho ataque de profissionalismo. Retirou da mesma um contacto aleatório de algum cliente e começou a digitar o número na máquina. Pegou numa qualquer folha branca e colocou-a no aparelho de fax. Segurou na ponta da gravata e inseriu-a dentro da ranhura do fax, junto com a folha branca. Um largo sorriso de orelha a orelha enchia-lhe o rosto. Digitou um número e premiu em OK; o aparelho de fax começou a processar o envio da página, tal como da ponta da gravata. O móvel onde estava o fax era muito estreito, havia apenas um pequeno espaço, que dificultava até o manuseio comum do mesmo, em circunstâncias normais. Mas estas não eram circunstâncias normais, e o espaço exíguo entre a prateleira onde estava o aparelho e a estante acima era o ideal para mais uma tentativa. O aparelho iniciou o processamento do envio para um qualquer cliente. Seria de certo modo curioso, do outro lado receberiam uma folha em branco e um pedaço de gravata rasgada, talvez com algumas nesgas de sangue, ou até com partes de couro cabeludo e miolos espalhados na superfície branca… uma pintura abstracta. A máquina começou a encravar, parecia querer cuspir a folha e a gravata; movia-se em movimentos ora ascendentes, ora descendentes; lento e apressado, e vice-versa. A gravata apertada firmemente ao pescoço sufocava-o, impedindo que conseguisse respirar de cada vez que o fax puxava o tecido. Depois, ao encravar, o fax deixava o tecido da gravata com alguma folga, o que permitia que deixasse de sufocar. A cada movimento ascendente e enquanto a gravata era puxada, embatia com a cabeça no estreito móvel onde repousavam inúmeros dossiers e documentação empoeirada e o aparelho de fax. Lentas e breves pancadas, inconsequentes e irrelevantes para o plano de conjugar duas tentativas numa única. Aliar a sufocação através de uma apertada gravata encravada engenhosamente na ranhura de uma máquina de fax com a ideia de violentas pancadas com a cabeça num móvel. Um plano interessante e certamente dotado de alguma inteligência e perspicácia. Se há algo a que não se poderia acusar este resoluto suicida era de que não tinha uma certa criatividade. Um novo fracasso… o pior de todos, pois nem sequer se sentia perto de alcançar o objectivo. Ainda por cima estava preso a uma máquina que se engasgava sucessivamente; o sangue acorria apressado até ao cérebro, impedindo o fluxo da respiração. Parecia por vezes que se preparava para desmaiar; somente para pouco depois recuperar os sentidos. Tentou puxar o corpo para trás na tentativa de rasgar o tecido e libertar-se. Bom material é certo, não cedeu de todo, impecável gravata de seda. Por esta altura, o burburinho intensificava-se ao redor dos demais escritórios, a rua estava alerta e curiosa face ao que se passava com os infrutíferos ímpetos suicidas. Os telefones tocavam ininterruptos, de escritório em escritório. Parecia um legítimo dia de trabalho e com grande agitação. A notícia espalhava-se como rastilho e não tardou muito que vários funcionários se juntassem nas ruas outrora vazias, observando o que se passava. Outros ainda cumpriam as directivas empresariais e no local de trabalho comunicavam de gaiola em gaiola, aventando possíveis cenários e motivos que explicassem de certo modo o que se passava na parada e pacata rua. O que é certo é que havia um sentido de excitação, curiosidade, diria até entretenimento, algo interessante, inesperado que preenchia o quotidiano. Pouco tardou até que começassem a fazer apostas sobre quais seriam os futuros métodos a experimentar. Apostavam se seria bem sucedido, se fracassaria, quais as tácticas a utilizar, se ficaria perto do cumprimento de intuito, se falharia por completo. A agitação na rua adensava-se, os sorrisos, os olhares curiosos, adrenalina, mas sem nunca aproximar do escritório. Nem havia essa preocupação em nenhum dos homens e mulheres que conheciam o suicida há vários anos, mas nunca sequer haviam trocado mais que cumprimentos e breves acenos, ou olhares. Alguns ponderavam tentar perceber o que o levava a tentar veementemente extirpar a sua própria existência. De certo modo poderei até dizer que para a maioria dos espectadores era de todo irrelevante e que se estavam completamente nas tintas para essas questões. Estavam fascinados com o que viam, com o mistério, com o fervilhar voyeurista, com a vontade de saber o que aconteceria de seguida. Era um espectáculo, uma maravilhosa fuga ao tédio corporativo. Parar o espectáculo estava fora de questão. Pareciam crianças efusivas, entusiasmados com o frenesim, sedentos de carnificina e das mais nefastas auto-agressões que aguardavam, como espectadores de um circo. Entretanto o nosso entertainer favorito continuava agrilhoado pela gravata, preso ao fax, tentando libertar-se sem grande sucesso. Puxou o corpo para trás na tentativa de alcançar uma tesoura que estava em cima da mesa. A cada movimento e esforço para alcançar o objecto, sentia-se desfalecer, enquanto a gravata lhe apertava o pescoço. Estava roxo, com as órbitas dos olhos inchados, pareciam saltar-lhe para fora. Lutava para conseguir segurar o objecto por entre os dedos. Estava agora convicto de que teria de se libertar do aprisionamento pelo pescoço. Não que tivesse nascido em si um súbito e pulsante clamor pela vida, simplesmente sentia um incómodo crescente e de certo modo desesperante em cada momento em que cessava de respirar. Aborrecia-o igualmente estar preso sem conseguir se desenvencilhar, ainda se servisse o propósito maior… mas não… Por fim alcançou a tesoura e apressou-se de imediato a cortar a gravata. Caiu com estrondo no chão, enquanto o resquício de tecido que se mantinha encravado foi puxado para dentro da ranhura da máquina de fax. A rua estava ao rubro; vários funcionários conversavam à porta dos escritórios, sorriam e bebiam café. Outros reuniam-se nos escritórios. Começava agora algo de maior grau de seriedade. Algo que não só se aliava a uma necessidade de entretenimento, como a uma vontade de prosperar. Não se limitavam a aventar teorias e a jogar ideias para o ar, como lineares e banais conversas de quem está perante acontecimentos inesperados que despertam a curiosidade. Apostavam… sim, apostavam largas quantias de dinheiro, como se estivessem num casino a jogar roleta ou póquer. Jogavam com o fascínio ou com a demência. Eram cinco horas e quarenta e sete minutos da tarde. Às seis em ponto a rua fecharia. Em movimentos automatizados, como máquinas numa indústria, os funcionários das várias lojas, escritórios de advocacia, contabilidade, imobiliárias, e inúmeros actos e actividades de raiz comercial e financeira… ou nas palavras do desesperado suicida, as jaulas de vidro de tédio avassalador e devorante monotonia. Tamanha moléstia lhe causava o quotidiano rotineiro. Os minutos passaram em sequiosa vontade… o tempo arrasta-se quando se regista inactividade. Apesar de o ignorar ou desconhecer, o tempo passara com algum conforto. Manteve-se entretido durante os ímpetos instintivos de cariz mortal. E agora o dia culminava… com uma certa tolerância, apesar do desejo e da ansiedade em alcançar os objectivos. Eram agora seis horas. Como autómatos de carne e de vontades milimétricas controladas com precisão cronometrada, os funcionários saíam em uníssonas coreografias, enchendo a rua de corpos desejosos de terminar o dia laboral; as luzes apagavam, computadores, faxes e máquinas de café desligadas, alarmes apostos e portas de vidro trancadas. O suicida imortal acompanhou o ritual de saída, calmo e pausadamente. Escondeu a meia metade de gravata que ainda ostentava ao pescoço dentro da camisa branca em tonalidades bordeaux de sangue, vestiu o casaco; arrumou apressadamente alguns papéis e objectos, desligou tudo e saiu. Enquanto percorria a rua de escritórios, notou que os demais funcionários estavam parados e fitavam-no. Alguns conversavam entre si enquanto o observavam fixamente. Outros sorriam. Outros ainda, acenavam e inclusive de polegares em riste, pareciam apoiá-lo e até incentivar. Prosseguiu caminho ignorando os restantes, afinal desde que por lá vivia e trabalhava pouco mais trocara que cumprimentos e breves acenos. Uma ou outra palavra com alguém, insuficientes sequer para que captasse nomes ou quaisquer outras informações. Continuou caminho até à rua transversal, onde se localizava o aglomerado de apartamentos. Era um extenso prédio, semelhante a uma colmeia, recheado de cubículos habitacionais. Havia igualmente um edifício contíguo, apêndice do prédio principal, a cantina. Local onde se juntavam após acabar os compromissos laborais. Ingeriu uma sopa e uma sobremesa leve e seguiu para o apartamento. A mesma rotina diária, semana após semana. Chegar a casa por volta das seis e quarenta e cinco após passar pela cantina para um jantar leve; sentar-se no sofá do pequeno cubículo a que chamava de apartamento; descalçar-se e retirar o relógio e colocá-lo numa mesinha com um candeeiro ao lado do sofá; levantar-se e ir à kitchenette buscar uma caixa de donuts e uma garrafa de água fresca; voltar a sentar-se; pousar a caixa e a garrafa na mesa; acender a TV e começar a ver um qualquer programa. Olhava siderado como se estivesse sonâmbulo num limiar da letargia, os olhos mal piscavam. Da rua poder-se-ia avistar as centenas de janelas da colmeia do complexo de aglomerados habitacionais, as luzes das televisões a piscar, em todas as casas. E assim continuava… sentado no sofá, de olhar vítreo e compenetrado no vazio obsoleto da programação… Anúncios e anúncios e lixo televisivo… Horas depois os programas findaram, uma chuva de meteoritos e barulho ensurdecer invadiu o monitor do aparelho. Ele continuava siderado a olhar fixamente os chuviscos no visor. Às dez horas em ponto, o alarme do relógio que este colocara horas antes na mesa a seu lado, tocou alertando-o que era tempo de dormir. Como um reflexo condicionado, levantou-se, apagou a televisão e foi-se deitar. As horas passaram rápidas e em fôlegos de imediatismo… e assim chegou a manhã. Chuviscava lá fora, uma chuva miudinha que parecia alertar para uma tempestade. Certo é que nada alertava, pois era igual todas as manhãs. Ao raiar do dia, quando a noite se dissipava e o crepúsculo matino se elevava intransigente nos céus, um fino e breve resquício de azul era de imediato devorado por nuvens cinzentas, tornando-se depois os céus em espessos escurecidos, aventando a tempestade que sempre cobria as manhãs, até se dissipar ao dealbar da tarde, tornando-se em insuportáveis calores. Eram sete da manhã. O despertador tocou. A chuva começava… E ele acordou… Tudo começava novamente. Mais um dia… Sentia um peso enorme na cabeça; mal conseguia abrir os olhos. Doía-lhe as pálpebras dos olhos, as fontes da cabeça. Sentia a cabeça gigante, vazia, mas cheia. Como se o vazio a enchesse desse mesmo nada. Acordava logo com medo, medo do que o esperava. Mais um dia de solidão, fechado num escritório a aguardar a hora de fim de expediente. Levantou-se com muita dificuldade, o corpo parecia não responder, os músculos dormentes e doridos; sentia-se furioso, irritadiço e enervado. Não tinha acção nenhuma, movia-se porque sabia que assim tinha que ser e tinha compromissos e deveres a cumprir, apesar de saber que se não os cumprisse, mal algum daí proviria. Arrastou-se para a casa de banho, de olhos semi cerrados e ainda sonolento; ligou a torneira e um pulsante jacto de água gelada caiu sobre sua cabeça. Seria o necessário bálsamo para conseguir despertar. Vestiu-se apressadamente sem olvidar a obrigatória gravata; bebeu um copo de leite branco fresco e saiu para o emprego. Como sempre, ou não fosse esta uma vivência de repetições ad nauseum, regressou ao apartamento minutos após sair. Esquecera o guarda-chuva, como o fazia diariamente, apesar de saber que chovia pela manhã. Uma chuva branda e de breves salpicos, em crescendo para uma tempestade de trovões e relâmpagos. A chuva começava a se intensificar… prosseguiu percorrendo o caminho da rua de apartamentos até à transversal de escritórios. Uma vez mais deparou-se com os demais funcionários que recomeçavam logo pela manhã os automatismos proletários. Dirigiam-se em multidões, uns apressados, outros em acalmias aparentes. Vários o cumprimentavam, outros acenavam… Parecia que pela primeira vez começava a se integrar em algo. Passeava-se sempre por locais e espaços em solitário silêncio. Não estava habituado a que lhe prestassem atenção nem tão pouco a interagir com outros com tamanho interesse e amabilidade. Chegou à porta do seu escritório e para começar havia algo de novo. Primeiro desafio do dia, quiçá. O quotidiano fora desafiado. No degrau da porta de entrada deparou-se com um envelope castanho algo molhado da chuva e dentro do mesmo, aquilo a que, pelas formas, parecia indiciar uma caixa. Apressou-se a entrar e abrigar-se da forte chuvada que intensificava gradualmente. Pousou o envelope castanho na mesa e sacudiu o guarda-chuva, retirou o casaco ensopado e, sem faltar a apertada gravata que guardou dentro de uma gaveta. Ligou a maquinaria: fax, impressora, máquina de café, computadores, acendeu as luzes da montra… Preparou a máquina para beber um café. Logo pela manhã bebia em dois copos de plástico… em jejum. Hoje não arriscaria o suicídio por café. Era um desperdício de tempo e de um bom e bem dispendioso café. Ao menos isso… Sentou-se e começou a olhar para o envelope castanho. O patrão não o avisara da chegada de encomendas; aliás há meses que não chegava nada que se parecesse. Correspondência comum e contas para pagar, somente. Estranhou o carteiro não ter aguardado que chegasse, pois por norma esses pacotes exigem a rubrica da praxe. Pouco passava das sete da manhã; ainda sonolento com um inebriante latejar na cabeça, irritadiço, mas no entanto ainda sem os índices despertos necessários para se sentir furioso e irrequieto e envolver em suspiros e praguejos internos de fino desespero. Havia que manter alguma calma, o dia apenas começara e seria um desperdício de bom sofrimento começar a desesperar tão cedo. O envelope não tinha quaisquer informações escritas. Nem remetente, nem destinatário. Decidiu abri-lo… De certo modo fervilhava de curiosidade. O que indiciava uma breve noção de conforto e uma certa leveza de espírito. Devia ser a sonolência da manhã, com toda a certeza. Tal como as formas no envelope castanho molhado indiciavam, era uma caixa rectangular de madeira, com um botão em tons prateados na face frontal. Havia um pequeno envelope branco colado à caixa. -“Contamos contigo!”- Esta breve e enigmática frase escrita a caneta preta com uma letra bem carregada. Dentro da caixa de madeira estava um revólver, com um depósito de cartuchos e um cilindro giratório com culatras onde se posicionavam as munições. Quem quer que lhe ofertara a arma, colocara dois cartuchos apenas junto ao mesmo. Talvez considerasse que um tiro apenas seria mais que suficiente para satisfazer de uma vez por todas o desejo deste homem em morrer, e um segundo disparo, caso necessário, asseguraria o sucesso da demanda proposta. Pegou no revólver e colocou os dois cartuchos dentro da câmara e fez rodopiar o tambor cilíndrico. Estava com um crescente entusiasmo, uma perturbação orgânica, calafrios de nervosismo e excitação. Pressionou o cano do revólver bem encostado ao queixo… Assim ficou alguns minutos brincando com o tambor cilíndrico, rodopiando várias vezes, com o cano bem vincado. Engatilhou o cão do revólver… A rua parecia um casino… Reboliço constante e apesar das fortes chuvas e trovões que cobriam os céus. Os funcionários corriam de escritório em escritório, telefonemas… Um elaborado sistema de apostas estava a ser posto em prática. Verdade seja dita e apesar das conjecturas e negociatas que prosperavam à custa das tentativas suicidas, nenhum deles queria ou esperava que o homem conseguisse levar a sua avante. Para onde iria o entretenimento e a esplendorosa ruptura com o quotidiano entediante? Ainda que para isso perdessem elevadas quantias de dinheiro. Mas não era aí que residia o cerne da questão. Era chegada a hora. Ainda de revólver em riste e firme no queixo, premiu o gatilho. Nada aconteceu. Uma das culatras estava vazia… das seis, apenas duas estavam artilhadas com cartuchos. E ele as colocou aleatoriamente. Ainda que não o fizesse propositadamente, este era um factor de criação de um certo mistério e imprevisibilidade. Imprevisibilidade essa que rapidamente se dissiparia se este se apressasse a disparar de uma vez, esvaziando o tambor. Um disparo… dois disparos… Ao terceiro disparo ouviu-se um forte estrondo por toda a rua. De seguida um prolongado silêncio… Um crescente e ensurdecedor vazio de quietude flutuava pelas paredes e pelos ares, em finos recantos, penetrando ínfimos espaços. O projéctil percorrera toda a extensão da face do homem, desde o queixo de onde saíra o chumbo do cano, viajando até ao cérebro e irrompendo com uma esplendorosa explosão até ao tecto do escritório. Um irreverente gotejar brotou em força impetuosa como um repuxo, uma cratera se abrira no topo do crânio, perfurando o parietal. Uma ruptura no topo da cabeça; acima no tecto uma contundente mancha escurecida decorada com sangue, restos de ossos estilhaçados e fragmentos de miolos cuspidos pelo impacto do tiro. O sangue jorrava do buraco ao cimo da cabeça, em intervalos de latejos inconstantes e de arremessos imprecisos, tanto velozes, como nem tanto…. Sentiu-se exageradamente quente, como se uma imensa força de calor se apoderasse de suas carnes, vindas de cima para baixo e conquistando o tronco e as pernas. Sentiu-se desfalecer e quase perder as forças para se equilibrar em pé. As dores eram inefáveis e até de certo modo anestesiantes… Estava totalmente resignado e diria até que este novo fracasso nem sequer o encarava como tal. Era uma mera tentativa e não mais que isso. Prosseguiu sereno; colocando o revólver, ainda flamejando de calor e fumo, dentro da caixa rectangular de madeira. Tomou nas mãos o guarda-chuva e pousou-o sobre a mesa. Da sua cabeça continuavam a gerar torrentes de sangue, encharcando o seu cabelo. Quebrou os aros dobráveis do objecto aramado e sem delongas perfurou o buraco no crânio, servindo-se de um arame do guarda-chuva. O fluxo sanguíneo cessou de imediato. Tinha agora um arame cravado ao centro da cabeça; e começava paulatinamente a experienciar uma espécie de dormência e fraqueza que começara a sentir logo após os disparos, mas que parecia agora adensar-se. De certo que possuir um elemento estranho a perfurar o cérebro teria algumas consequências. Aumentavam as tonturas e o enfraquecimento físico e mental; as pernas em progressivo declínio; a sonolência… Uma ideia percorria-lhe a mente, apesar das dificuldades em formular um pensamento conexo e que lhe permitisse decidir com certezas o que fazer. Saiu pela porta fora e começou a correr… correu e correu; sem muito reflectir sobre nada. Deixou-se levar apressado, com medo de desfalecer e cair… Percorreu uma vez mais a rua de escritórios e lojas, deixando ao abandono o seu local de trabalho; de luzes acesas, de porta escancarada. Os restantes presenciaram a repentina fuga, em choque e admiração, e igualmente com uma estranha sensação de desilusão. Era agora o fim dos procedimentos e do entretenimento. Apesar de desejarem que não findasse, e as apostas que circulavam, nenhum homem ou mulher esboçou o menor esforço em perseguir ou impedir o entertainer suicida. Nunca mais o veriam naquela rua de ofícios, nem na cantina… Restava agora encontrar novas actividades que lhes preenchessem o vazio e ajudassem a suportar as dolorosas repetições que se propagavam. O suicida continuava a correr sem muito ponderar sobre seu destino; percorreu até alcançar a transversal; para lá do extenso edifício de aglomerados habitacionais que muito se assemelhava a uma colmeia… Desde que ali vivia que nunca mais se atrevera a transpor o espaço para lá do prédio. Resumia-se a caminhadas pendulares entre as duas ruas, a rua de produtividade e empregabilidade e a rua de repouso e refeição. Estava agora num estreito caminho de terra batida e enlameada; a chuva continuava a acariciar-lhe o rosto e as roupas encharcadas; adensavam-se as tonturas, o caminho surgia-lhe desfocado, como se fosse interminável. A cada passo dado parecia-lhe que estava mais longe, como se voltasse para trás ou não prosseguisse de todo. Ao fundo surgia um imponente edifício de aparência hexagonal, de formas poliédricas regulares, de vidros finos e brilhantes, límpidos e transparentes. Lentamente começava a cair… a cabeça pesava, a visão distorcida e tudo ao redor parecia dançar num constante reboliço. O edifício hexagonal ali estava tão perto, no entanto parecia afastar-se. Pouco depois desfaleceu…. E desmaiou. Ali permaneceu por algumas horas desacordado até que um vento fresco e brando o despertou… Uma folha de jornal amarrotada e algo encharcada voava, trazida por aragens sibilantes. Silvos agudos distantes, aproximavam-se e intensificavam… A folha de jornal deteriorada soprada em lamentos encalhou no arame que este ostentava alojado no crânio; o papel oscilava irritadiço, embatendo com veemência na testa. Na linha do horizonte, enevoada e de formas ainda desbotadas, surgia uma locomotiva e gritos estrídulos de máquinas a vapor… Estava agora inteiramente desperto; sentado, observava as majestosas carruagens que brandiam pelas estradas férreas, desaparecendo por detrás do edifício hexagonal. Retirou a folha de jornal que encalhara caprichosamente no topo da cabeça. Teriam passado algumas horas, talvez fosse de tarde, pois já não chovia e o Sol elevava-se agora luminoso e de insistente calor seco e sufocante. Pegou na página de jornal suja e molhada e começou a ler. No título do mesmo surgia em letras garrafais a seguinte informação: ”Companhias de seguros pagam fortunas a vítimas de acidentes de viação!” Sentiu um frio lancinante que lhe cobria o corpo por inteiro, e uma inexpugnável certeza que lhe encharcava a alma. Era de facto eterno, com as demais condicionantes e fatalismos que essa condição proporcionava. Combater seria de todo inútil e inoportuno. Nesse mesmo momento tomou a importante decisão de aproveitar e servir-se da sua vil e cruel enfermidade. Levantou-se e caminhou diligente pelo caminho que o levava até ao edifício hexagonal de formas poliédricas regulares, de vidros finos e brilhantes, límpidos e transparentes. À entrada, num omisso cubículo empoeirado, permanecia uma mulher de meia-idade, de óculos com espessas lentes, cabelos cinzentos encaracolados. Parecia ser feita de cartolina, apenas ali estava indolente, e expressão diáfana. A mulher nada disse e o homem limitou-se a um breve murmúrio. Comprou um bilhete e dirigiu-se para perto da linha férrea; a locomotiva aguardava-o. Não havia mais ninguém em espera para abandonar a cidade. E assim viajava, de arame de guarda-chuva cravejado no topo da cabeça, de fato corporativo manchado de sangue, sujo e molhado da chuva; com sua folha de jornal guardada no bolso. Uma nova oportunidade nascia e um novo fervor se erigia. A viagem durou várias horas, instigando o espaço e a mente. Sentiu-se coberto de melancolia, e ao mesmo tempo um lacónico consolo que o aquietava de certo modo. Nos anos que se seguiram, este homem teve cento e trinta e seis acidentes de viação, foi atropelado setenta e duas vezes; e sofreu lesões letais em trinta ocasiões. Sobreviveu a todas elas e às custas de seguros e indemnizações lucrou fortunas que lhe permitiram correr mundo e conhecer locais e alcançar fascínios imensos e recompensadores, tanto de matriz económica, mas principalmente espirituais. Ainda assim e apesar de tudo que alcançou, uma vez por outra tentava o suicídio, de mais diversas formas e estranhos métodos. Apenas por curiosidade em saber se poderia algum dia abandonar o seu fado sempiterno. Escusado será dizer que em todas elas falhou. Qual é o nosso lugar neste mundo? Estaremos aqui como invólucros de carne, com nossos fatos de pele e ossos encravados na realidade? Haverá algum desígnio, um plano definido? Ou seremos meros peões a respirar, à deriva e à espera do amanhã? À espera do fim? Será tudo uma simples passagem? Ou uma infindável e questionada viagem? Seremos reféns de bocejos e quotidianos ancorados num angustiante mimetismo? Ou merecedores de prazerosos fascínios, de desafiantes augúrios, de sorridentes promessas? Que é que levamos da vida que não mais que microscópicos fragmentos de sensações e experiências difusas e diluentes em determinados momentos díspares e ventanias espaciais de uma brevidade insana? Nada mais que memórias, e que estas não mergulhem em maresias de esquecimento. Valha-nos isso.