Urubu Cultural

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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O véu de Cinha Gonçalves

Cinha Gonçalves, era, ao que tudo indicava, uma adolescente normal, sonhava, como qualquer outra, casar de véu e grinalda, a um sábado à tarde, com todos os familiares presentes na cerimónia.
Porém, um dia, caiu no inferno do vício do álcool, descendo a um submundo imundo, onde impera a desgraça e a decadência humanas.
Cinha Gonçalves, começou por consumir um inocente croft, com o matinal café; quando deu por ela, certo dia, já estava nos três uísques a meio da tarde – para relaxar – desculpa esta, mais comummente empregue, pelos alcoólicos, para mascararem a sua dependência e só a si próprios se iludirem.
A família de Cinha Gonçalves era muito abastada, internando-a em várias clínicas de desintoxicação, inclusive no instituto de renome: Le Patriarche. Todas tentativas vãs, pois de cada vez que Lili Gonçalves se encontrava no exterior, acorria de imediato a um bar, ou loja de licores, onde pudesse matar a sua ressaca, satisfazendo o maldito vício do álcool.
Cinha Gonçalves, não gostava nada de gajos que têm conversas de treta no café, quanto mais quando se tratavam de retornados professoras de latim, que queimavam as pestanas e ganhavam mal. Quando encontrava gajas destes no café, chamava-lhes putas, mandando-as para o caralho.
Gostava de tomar o seu absinto em paz e sossego, sem ter que estar a aturar conversas de merda, bem como, risos histéricos; deixou de frequentar cafés, passando a frequentar tascas, onde o único barulho que se ouvia, era o baque surdo do carrão de senas, a soar nas velhas mesas de madeira, onde os velhos jogavam o dominó e, mais silenciosamente, porém não totalmente, a sueca, pois quando um velho fazia um corte com muitos pontos, ao mesmo tempo que jogava a carta de trunfo, como que socava o tampo da mesa. Nestas tabernas, ou vendas, como também são conhecidas, a frequência de pederastas era nula, sendo ainda uso, escarrar-se para o chão, apesar do aviso afixado na parede, proibindo tal prática.
Muitos velhos apalpavam o cu de Cinha Gonçalves, o que não lhe parecia de todo desagradável, visto os velhos, de seguida, quase sempre lhe ofertarem um bagaço, ou um copo de vinho, quando não ofereciam nada, proferiam: «Fica para a próxima, Lili», e lá lhe iam apalpando, regaladamente, as nádegas.
Desta situação, até Cinha Gonçalves mergulhar no submundo da prostituição, foi um pequeno passo. Houveram vezes, em que Cinha aceitava o pagamento em géneros, isto é, recebia garrafas de bebida, em troca do seu sexo, tal era o vazio moral em que se deixara mergulhar.
Os pais de Cinha Gonçalves, estiveram dois anos sem saberem da filha, ignorando de todo, a perfídia em que esta se deixara mergulhar.
Chegou o dia em que a jovem mulher, inevitavelmente, contraiu a sida, e não foi isso que a impediu de continuar, a sua adição ao álcool. Para além da sida, viu-se a braços com uma grave cirrose hepática e com uma gravidez indesejada.
Aquando do seu internamento, já em trabalho de parto, no hospital do consagrado coração de Maria, Cinha Gonçalves, não era mais que um esqueleto ambulante.
A criança nasceu, obviamente, enfezada e raquítica, contudo, contrariando todas as expectativas, a mãe decidiu conservar a custódia da criança.
Passaram-se os anos, e o bebé foi-se criando graças à caridade das mulheres dos taberneiros, que com dó, lá iam dando qualquer coisinha à pobre criança; do mais, alimentava-se de galões e bolas-de-berlim, numa qualquer leitaria.
Os pais de Cinha Gonçalves, ignoravam ter um neto, e já consideravam Cinha como desaparecida, tinham muita pena da vida dissoluta, que a filha levava, apesar de tudo, não lhe puderam valer.
O filho de Cinha Gonçalves, só foi registado com três anos de idade (já comia pão com côdea), só o sendo, graças à mulher do senhor Barata, dono da tasca homónima, que Cinha Gonçalves frequentava assiduamente. A dona Alcina (era este o nome da benemérita senhora) é que pegou um dia, na mãe e no filho, e os levou ao registo civil. Sem hesitar, Cinha Gonçalves, decidiu chamar ao filho: Jesus Gonçalves Cristo.
Começou o petiz, a ser conhecido, em todos os tascos que a mãe frequentava, em busca do seu velho deus uísque, por menino Jesus. Era o predilecto dos velhotes, que o sentavam no colo, e lhe contavam contos de encantar.
Aos cinco anos de idade, apesar de todas as complicações físicas e mentais, Jesus Gonçalves Cristo, era já um mestre: no dominó, na sueca, e até já jogava, com alguma desenvoltura, o gamão batido. Ainda assim, tinha muita pena de não ser como os outros meninos: poder frequentar a escola, ter uma casa, um pai, que o carregasse às cavalitas ou o levasse à bola, aos sábados. Importa aqui frisar, que o sistema de segurança social, do país onde Cinha Gonçalves habitava, não era de todo eficaz, não tendo os poucos técnicos de assistência social, alguma vez tido conhecimento da existência de Jesus Gonçalves Cristo.
Contudo, chegou o dia em que o mancebo, dormindo envolto em parco agasalho e alguns papelões, foi visitado por um anjo, descido dos céus. Jesus Gonçalves Cristo, boquiaberto, não teve reacção, estupefacto de todo, só conseguiu ouvir o que o mensageiro divino lhe comunicou:
- Jesus Gonçalves Cristo, vós sois um eleito de deus nosso senhor, VÓS!, filho do pecado, da luxúria, e do vício, fostes o escolhido para expiar os pecados da Humanidade, sobre vossos frágeis ombros, vai recair o calvário da salvação dos Homens, e isto pelo que já sofrestes, e ireis sofrer…
Sem outro assunto, o anjo desvaneceu-se na atmosfera.
Vinte anos mais tarde, contando já com trinta e três anos de idade, deu entrada no hospital psiquiátrico doutor Luís Ventura, o “paciente” Jesus Gonçalves Cristo, encontrado a vaguear pelas ruas, insistindo em que deveria ser crucificado, pois só assim a Humanidade conheceria a liberdade. Ninguém atendeu às suas súplicas, para ser de imediato crucificado, pelo que Jesus Gonçalves Cristo, acabou os seus dias, sedado, entre o quarto, o refeitório e o recreio do hospício.

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