Urubu Cultural

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sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O Cangalheiro da Dinamarca


 O que outrora fora o cavaleiro da Dinamarca, e viveu as peripécias mundialmente conhecidas: por terras da Palestina, Itália e Flandres; como se sabe, chegou a casa no dia de Natal, graças à ajuda que os anjinhos lhe proporcionaram ao, candidamente, iluminarem o grande abeto fronteiro à sua moradia. Tomou-se ele mesmo, e graças a uma importante revelação nocturna, que o menino Jesus lhe fez, num rico e próspero negociante (em parte também, devido à convivência com o mercador e o banqueiro, em casa de quem ficou hospedado, durante o seu périplo peregrino).
 Disse-lhe o menino Jesus que abatesse o abeto, e partindo da rica madeira que dele obtivesse, construísse caixões e vendesse à população.
 Religioso e temente a deus nosso senhor como era, o Cavaleiro não hesitou, e na manhã seguinte, com o precioso e indispensável auxílio de sua prol, convenientemente munida de aguçados e robustos machados, deitaram abaixo a árvore, que tanto tinha ajudado o Cavaleiro, aquando da sua desorientação no meio da floresta hostil, seviciado pelo cortante gelo invernoso, que o seu, apesar de tudo, grosso capote de peles, não impedia, e atacado por ferozes bestas sedentas de sangue.
 Já detendo os indispensáveis utensílios de carpintaria, que nestas casas de campo sempre os há, para as quotidianas tarefas: da mais corriqueira reparação, ate à laboriosa e intrincada construção de, por exemplo: uma resistente edificação onde abrigar o feno, da chuva e da neve, que na Dinamarca se sabem abundantes no inverno, para a posterior ingestão do gado ovino e bovino.
 Fez o Cavaleiro, agora Cangalheiro, muita fortuna com a negociata dos caixões e posterior organização de funerais, que foi ate aí que o seu negócio se estendeu. Fazia caixões em variadas madeiras, de tudo quanto encontrava nas suas terras, a título de exemplo: tílias, carvalhos, fortes e rijos, pinheiros bravos, enfim, um manancial de tipos de madeira. Para seu benefício, aconteceu que um de seus filhos, de seu nome Edmund, era mestre no que dizia respeito a xilogravura, e ornava lindamente todos os caixões dos velhos burgueses, que antes de morrerem tinham dinheiro para lhe pagar bem. Apesar de tudo, esta vida não era a que mais agradava ao ex-Cavaleiro, amofinando-se com frequência, na rotineira tarefa de cortar árvores. Fazia-o porque o menino Jesus lho tinha dito, nada mais. Diga-se também de passagem, que o Cangalheiro da Dinamarca, até nem era pessoa muito materialista, não dando importância demasiada, ao capital que auferia.
 Sabendo da depressão em que o Cangalheiro da Dinamarca se encontrava, nossa senhora de Fátima, (que como a pescada, antes de o ser, já o era, só ainda não tinha aparecido aos três pastorinhos…) apareceu ao Cangalheiro da Dinamarca em sonhos dizendo-lhe assim, nestes exactos termos:
 - Cangalheiro da Dinamarca, meu bom filho, vai em peregrinação a Portugal, terra de onde provem os heróis cujas façanhas ouviste contar na Flandres, e por lá espalha a doutrina da fé.
 Na manhã subsequente ao sonho, o Cangalheiro da Dinamarca, à mesa do pequeno-almoço, anunciou assim à família:
 - De hoje a um ano, não estarei aqui reunido com vocês, a me alimentar em comunhão, pois que parto para Portugal, terra onde a nossa senhora, que virá a ser de Fátima, me mandou ir pregar, como São João Baptista, um dia no deserto, e não sei se volto.
 Sua mulher e filhinhos, bem como os servos, choraram logo ali lágrimas de espesso sangue, e Edmund foi para a oficina, onde se suicidou com um formão, tanchado nos peitos.
 Não querendo saber destas súplicas, o Cangalheiro da Dinamarca arreou a sua besta cavalar, e deu início a mais uma longa jornada, como era seu apanágio. Só parava para dormir e dar cevada ao cavalo. Levou seis meses de viagem, que correu sem percalços dignos de nota.
 Chegado finalmente a Portugal, espantou-se muito o Cangalheiro da Dinamarca com a falta de asseio e educação destas gentes, que escarravam para o chão, e cujas ruas eram uma imundície autêntica. O Cangalheiro da Dinamarca viu como nossa senhora, que estava para ser de Fátima, uns séculos mais tarde, tinha razão, no que dizia respeito a evangelizar estes gentios.
 Debateu-se logo com um gordo frade, em Serpa, terra que conheceu ao cruzar a fronteira, de seu nome Ladislau Breyner, este homem comia muitos doces conventuais, arrotava e peidava-se constantemente, sem cessar, até vomitar. Tentou em vão, o Cangalheiro da Dinamarca educar esta alimária, mas falhou. Entre peidos e arrotos, este falou-lhe de uma linda terra que era Lagos, no Algarve, um bocadinho mais abaixo do Alentejo, de onde partiam as caravelas das expedições Portuguesas ultramarinas. Ora o Cangalheiro interessava-se muito por isto, e não apreciando de todo a convivência com o frade.
 Chegado a Lagos, admirou muito: as praias, o sol e o marisco; as pessoas continuavam a ser pouco higiénicas como no Alentejo, mas esse até era um mal menor. Decidiu o Cangalheiro da Dinamarca começar a sua pregação de bons-costumes, exactamente em Lagos; o clima ameno, e aprazível, foi um factor determinante nesta muito ponderada decisão.
 Hospedou-se em casa da Dona Aninhas, mulher solteira e muito beata, que vendo assim um homem alto e loiro, lhe disse que não precisava de pagar renda, desde que fosse bom cristão e não provocasse desordem. O Cangalheiro e a Dona Aninhas, forjaram logo ali uma amizade que ia durar décadas.
 A Dona Aninhas, apesar da sua inquestionável seriedade, e inquestionável idoneidade, fazia tudo para agradar ao Cangalheiro da Dinamarca, fazia-lhe bons petiscos, que o via comer com garbo e regalo, entre eles: papas com condelipas etc...
 Certo dia, a Dona Aninhas interessou-se por conhecer o nome do Cangalheiro da Dinamarca, e disse-lhe assim:
 - Qual é a graça de vossa excelência?
O Cangalheiro, que já arranhava um bocadinho o Português, respondeu:
 - Lars Vintenberg, minha senhora...
 - Ah, muito bem, tem um lindo nome, está visto...
 Com esta constante e insana convivência entre as gentes de Portugal, o Cangalheiro da Dinamarca, acabou por perder o juízo, começando por vaguear, de olhar vago, pelas ruas de Lagos, clamando que o fim estava próximo, e que se daria o apocalipse num riscar dum fósforo, assim do pé para mão. Ora o padre Correia, não gostou nada disto, e começou a pregar contra o Cangalheiro da Dinamarca. Quando passava na rua, era achincalhado e enxovalhado sem perdão, como um cão. E eis que Lars Vintenberg criou asas e se elevou nos céus, os seus olhos, chispando centelhas ardentes, começaram a abrasar os Lacobrigenses, loucos de dor e fúria, muniram-se de paus e pedras, começando a atacar o Cangalheiro da Dinamarca, que nos céus urrava como um bode expiatório, antes do dia da matança pública. Em voos quaise rasantes, colhia habitantes como quem come ginjas, umas atrás das outras, sem cessar, nem chorar.
 Amava a deus como toda a gente, e não percebia porque era maltratado assim. Era um dó de alma.
 Acabou no céu, anichado junto do menino Jesus e de nossa senhora de Fátima; também lá estavam o boi Bento e a mula amaldiçoada.

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