Urubu Cultural

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sábado, 12 de setembro de 2009

O Abraço da Serpe Persa

 Em um pequeno e penumbroso quarto, Otília repousa estendida em seu leito de ferro, por entre uma perna distendida e outra dobrada, poder-se-ia vislumbrar a sua negra pentelheira. Na divisão ao lado, seu irmão, assenta em um caderno algumas considerações, para ele pertinentes; quer ser poeta.
 Todas as janelas da habitação estão fechadas, de forma a evitar o enorme calor. Incomodada pelo mesmo, (que apesar de tudo não impede Crashburn de tomar bagaço de má qualidade) acorda Otília: espreguiçando-se felidiamente, senta-se na cama, e com seus pés bem cuidados, de unhas impecavelmente aparadas, procura as chinelas de quarto em pelúcia roxa. O intenso calor que, inoportunamente a despertou, também lhe causa sede. A caminho da cozinha, onde se pretendia refrescar, Otília reparar que o irmão está no quarto, a escrever, finge-se desentendida:
- Que fazes, Crashburn?
- Escrevo e tomo bagaço... - Crashburn respondeu sem levantar a cabeça, ou interromper a escrita.
- Tomas bagaço!!- exclamou Otília, exasperada – Agora todos os dias tomas bagaço, ainda por cima com este calor! Evidentemente queres te matar ...
- Todos os grandes poetas tomaram álcool.
- Mas tu nem sequer és poeta, quanto mais grande!
Crashburn não respondeu à provocação da irmã, continuando o que estava a fazer, esta, porém, tornou:
- O que tu queres realmente, não é ser poeta, mas evitar a realidade, que não suportas.
Crashburn, desta feita, levantou os olhos do caderno, e recitou:
- Dylan Thomas e Fernando Pessoa, só a título de exemplo, pois podia enumerar-te dezenas de outros artistas, que tomavam álcool e/ou outras substâncias inspiradoras.
- Inspiradoras my ass, tal como tu, não conseguiam aceitar a vida como ela é de facto. Não eras assim Crashburn, tinhas planos, fazias projectos, uma vontade imensa de viver, de um dia para o outro, simplesmente desististe de tudo ... - A voz de Otília era assumia agora um tom mais lastimoso, que propriamente de reprovação.
- Eu não desisti Otília, subsisti, na juventude fui subsistindo, os sonhos que tinha, os planos que fazia, não eram mais que uma mera ilusão, que me ajudava a aguentar isto, assim como o bagaço...
- Que idiotice! Pelo menos os sonhos não te matavam! – Otília ira-se de novo.
- Se queres saber a verdade, é o seguinte: apenas me aborreço, é isso mesmo, aborreço-me de fazer planos, projectos, aborreço-me de beber bagaço, vinho tinto, e tudo uma enorme maçada. Aborreço-me de tudo!
Ante esta declaração, Otília perdeu a pouca calma que lhe restava, agarrou com firmeza a maçaneta da porta do quarto do irmão, e fechou a mesma com enorme violência, provocando um grande estrondo que pôs um ponto final ao diálogo.
 Já na casa de banho, Otília abriu a torneira da bacia e refrescou as fontes, que tinham entrado em ebulição, após a altercação com o irmão. Decidiu por fim voltar ao quarto. Ao passar em frente à porta do quarto do irmão, percebeu que este ainda escrevia, devido ao arranhar do aparo da caneta no papel; apesar do calor, não se prestara sequer a abrir a porta. Um misto de irritação e desprezo, atravessou num arrepio o corpo de Otília: «Deixá-lo, não me vai arrastar com ele...».
 Numa atitude que a priori pode parecer confusa, Otília fechou também ela a porta do seu quarto. Deitada na cama, cobriu-se com o lençol de algodão. Pretendia entregar-se ao seu mais caro e secreto prazer. Começando por, languidamente, acariciar a sua vasta pentelheira negra, que como um imenso silvado, crescia em todas as direcções, com os dedos ia-a desembaraçando, pouco a pouco... Procurava uma imagem com que fantasiar, geralmente recorria à homossexualidade feminina, era de longe o que mais lhe satisfazia; porém, não se julgue com isto, que Otília era adepta do safismo, pelo contrário, apreciava bastante o convívio masculino, embora nunca tivesse mantido qualquer relação sexual, em parte devido a uma inexplicável repugnância pelo falo masculino erecto. Tivera alguns namorados. De seios tumefactos, os seus dedos procuravam agora o ansioso clitóris enrubescido.
 Crashbum, na venda, tomava mais bagaço e via andorinhas a voar, via andorinhas a falar, um falo de apara-lápis que voa sem parar, para a boca de um padre, de sotaina verde, sem pecar, continua emborcar, oh viagem maravilhosa. Sumo de uva escorre-lhe da boca, como sangue dos olhos de uma Virgem. Viva imagem do que é miséria humana, a miserável condição humana, a escarreta do universo, evolução embriagada, estagnada, que Crashburn não entendia nem sequer metade, que digo eu? Um quinto... na melhor das hipóteses. Oh delírio!, que doce refúgio me saíste... E o abraço do quente bagaço.
 Crashburn tinha um saco cheio de ossos italianos, e em breve viria a se corresponder com uma artista pornográfica, que tinha muito jeito para escrever, vai aqui o excerto dum excerto, que Jaquelina F. enviou ao seu correspondente, de Paris, tirado de um livro de versos, que recentemente editara:
"Telefones a tocar impedem-me de perceber o que na realidade se passa, um dragão com cabeça de telefone baba-se em cima de mim, uma baba ou ranho muito viscoso, parecendo do Kosovo. Poder-se-ia supor que deliro, pelo contrário, transpiro, mas transpiro de tal forma, que parece que choro num canteiro, sem flores de batatas-doces repletas de cicatrizes. Fornecem-me directrizes, para o que será o próximo assalto a lua sem espada, querem que me defenda à pedrada, sem espada? Defende-te com a televisão. Esta à mão? Esta ao pé, há que fazê-la passar do pé para a mão, como um malabarista do circo, que vomita entradas para o cinema cinético, numa atitude claramente desvantajosa para a sua profissão, pois que afasta os adeptos circenses, cansados de verem sempre os mesmos tigres a sofrer, semanas sem comer pipocas, que é que rima com pipocas? Trocas, trocas de casais, era o que fariam os artistas de circo, se tivessem autorização do Hictor Vugo Numerali, que é um fascista de primeira apanha. Certa vez conheci velhinho que fazia colecção de fascistas, se lhe davam um ditador comunista para a colecção, aceitava-o educadamente, atirando-o depois para o lixo, tinha aquela fixação dele, pronto! Só gostava mesmo era dos fascistas; que me lembre ainda não tinha o referido director de circo, que por estas alturas escrevia num penico. Mas voltando à vaca fria, o velhinho tinha uma vasta colecção, como me foi dado a ver, porém faltava-lhe qualidade, imaginem os amigos, senhoras e senhores, que o fascista mais famoso que o velhinho Alberto tinha, era o Salazar!! Que nem fascista soube ser como deve ser, demasiado beato e apagadiço, faz mais lembrar urna velha que um ditador."
Crashburn, com o entendimento demasiado embotado pelos efeitos do álcool, já não podia ler mais. Montou-se na sua bicicleta com pedais, e despediu-se nestes termos da mulher do taberneiro, que tinha nascido em fevereiro: «Encontrar-nos-emos no Inferno...». Pôs o capacete e foi para casa.
 Na casinha de banho, Otília tinha tomado uma resolução fatal como o destino. «Que desatino!» exclamou Crashbum, ao não conseguir enfiar a chave no orifício da fechadura: (Crashburn não tinha tido muitas oportunidades, de enfiar o que quer que fosse, em orifícios alguns) «Há falta de uma realidade melhor, e assaltado por tédio galopante, inventar-se-ão novas, apesar de circunscritas à imaginação e credos humanos ...». Quando Crashburn por fim lá entrou em casa, foi ver televisão, estava na hora do: Big Show Sic, I'm so sick. Procurou a fala com a sua irmã, que lavava a loiça:
- Otília, não estou alcoolizado, mas o mundo esta tão cheio de sexualidade, que aborrece viver...
Otília, apesar do aviso que o irmão tinha feito, em relação à influência da sua droga de eleição, julgou-o ainda bêbedo, porém considerou que o que dissera, não era totalmente desprovido de sentido, o que Crashburn disse, foi efectivamente sentido, por isso tornou:
- Poderá um velhote ainda dar um confeito a uma criança, sem ser rotulado de pervertido sexual?
Otília começou a chorar.

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