Urubu Cultural

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quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Carga Dramática!


- Bom dia. Gostaria de me candidatar a um subsídio e a uma bolsa de estudo.
- Bom dia, caro senhor. Veio a saltitar assim até aqui?
- Sim. Confesso que estou um pouco cansado.
- Sente-se.
-Obrigado.
- Ora, portanto… vejamos, vou preencher os documentos. As suas deficiências são as que estão… evidentes?
- Sim.
- Ora deixe-me cá ver. Só tem uma pernoca…. Amputado da direita… e… dois braços?
-Sim, tenho os dois braços. Não tenho mão no braço esquerdo. Nem sequer punho.
- Ausência de perna direita e mão esquerda… e punho esquerdo.
- Algum problema?
- O senhor é aleijadinho de nascença ou acidente?
- Nasci com malformações congénitas.
- Lamento meu caro, mas não lhe posso atribuir subsídio algum, nem tão pouco bolsa de estudo.
- Como assim? Porquê?
- Não tem carga dramática.
- Carga dramática? Não estou a compreendê-lo. Que quer dizer com isso?
- Carga dramática, meu caro. O seu estado de aleijadinho/coitadinho não é precedido de carga dramática.
Ou seja não foi uma terrível tragédia de índole gravosa que o deixou assim. Não teve nenhum acidente nefasto que lhe furtou a um futuro radioso. Não foi atropelado, não teve um acidente de automóvel, não caiu de um andar nem foi violentamente agredido por seis ou mais meliantes.
- Nasci assim. Mas não tenho posses e preciso de algum auxílio financeiro.
- Lamento, mas não é possível. Já nasceu… assim… não há muito a esperar. Já de raiz não se esperava muito de si, caro senhor. Ainda por cima entra-me aqui pelo próprio pé. Uma cadeirinha de rodas ajudá-lo-ia imenso. Sabe que a cadeira lhe daria pontos adicionais.
Lamento.
- Mas bem viu que não tenho uma perna. Entrei aqui aos saltinhos.
- Mas não estava de cadeira de rodas. Consegue caminhar, se não o fizesse quem sabe… nem sequer tem incontinência, nem tem o saquinho de urina, não se baba, fala fluentemente. Desculpe, mas não é possível.
- E agora que é que eu faço?
- A única coisa que me ocorre seria uma tragédia pessoal. Quem sabe um acidente de carro ou com qualquer outro meio de transporte.
- Ou seja teria de acentuar as minhas maleitas físicas com algo de carácter trágico?
- Ora aí está! Carga dramática!
- Estou a entender. Muito obrigado pela atenção. Tenha um bom dia.
- Bom dia!

11 MESES DEPOIS…

- Bom dia. Gostaria de me candidatar a um subsídio e a uma bolsa de estudo.
- Ora muito bom dia! Espere, estou a reconhecê-lo. Já cá esteve, não esteve? Na altura estava em clara infracção para a obtenção de subsídio e bolsa. O que o trás por cá?
- Exacto. Entretanto tive um acidente de viação.
- Lamento, meu caro. Esta vida… só nos trás desgostos. A estrada é um perigo! Ahhh… bem vejo, sim senhor. Muito bem! Noto que está em pior estado que da outra vez. Efeitos do acidente, presumo.
- Exacto!
- Ora vamos lá a ver! Cadeira de rodas... Sim senhor, muito bem! E a pernoca que tinha?
- Esmagada no acidente.
- Uiii homem! E que tem no rosto?
- Embati no tablier e quebrei o nariz. Perdi um olho no desastre.
- Ai homem, realmente! Que caso o seu! Lamentável. Uma tragédia! Bom… Parece que tem os requisitos necessários e exigidos para obtenção de vários subsídios e uma bolsa de estudo. E já agora, permita-me ofertar-lhe esta magnífica cadeira de rodas eléctrica, confortável e topo de gama para que possa deambular
com maior segurança e conforto.
- Muito obrigado.
- Não tem nada que agradecer. Estamos aqui para isso. A vida pode ser uma desgraça pegada, mas há que ter algum gosto nas coisas, não é mesmo? Ora muito bem! Tenha um bom dia.
- Obrigado, bom dia.

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