Urubu Cultural

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A solidão juntou os dois à esquina


 De certeza que, por inúmeras vezes, já nos questionámos acerca da solidão. O que é?; estarei só? A ideia de que se pode vir a estar sozinho na existência, para o ser-humano, é o pensamento mais atemorizador, que alguma vez lhe pode surgir na mente; até mesmo mais, que o da própria morte, pois que esta é uma das muitas soluções que o indivíduo solitário contempla (com demasiada frequência) para a solução do seu problema. Tirol Hiro Liro estava a considerar essa mesma hipótese, a de acabar com a vida. Dolentemente, num banco de madeira branco sentado, à mesa da cozinha, comendo o costumeiro pequeno-almoço: de duas torradas com manteiga e uma caneca de leite com ovomaltine, observava, do seu impessoal terceiro andar esquerdo, a chuva a desabar sobre o mundo. Tirol Hiro Liro estava bastante cansado da sua rotina. Dia após dia da semana, do mês, do ano: acordar às sete horas da manhã, fazer a barba, tomar duche, engolir qualquer coisa à pressa e correr, com enorme afã, para o metropolitano, com a preocupação quotidiana, de não se atrasar para o mísero emprego, de auxiliar de serviços gerais, de uma biblioteca cinza, somente frequentada por velhos loucos e crianças deficientes. Tirol Hiro Liro só não sabia como, e para além disso, ainda tinha, apesar de muito débil, um elo que o fazia hesitar entre o suicídio ou não. Era este a dança contemporânea. Paixão descoberta no final da adolescência, e que Tirol Hiro Liro nunca pôde concretizar em toda a sua plenitude, coleccionando recusas de inúmeras escolas de dança, decidiu finalmente, por se manter apenas como espectador interessado, um verdadeiro connaisseur leigo, recolhedor de toda a informação que encontra, e obviamente nunca deixando, na sala de estar, de ensaiar as coreografias da sua criação.
 Logo no andar abaixo, morava Tirol Hiro Lão, apesar da evidente semelhança do primeiro e segundo nomes, que ambos desconheciam, a relação entre os dois nunca foi além da costumeira saudação, que se presta aos vizinhos, ao nos cruzarmos diariamente, nas partes comuns do prédio; podendo ter até mesmo, no elevador, terem sido trocadas umas breves impressões, acerca do estado do tempo, mas nada para além disso. Tirol Hiro Lão tinha como actividade profissional, algo que, em parte, se relacionava com o hobby de seu vizinho, ou seja, a música. Tirol Hiro Lão, era pois, tocador de concertina: actuava três noites por semana em variados bares, de categoria bastante duvidosa, e nos restantes dias, tocava pelas ruas, umas vezes perto de esplanadas onde estivessem turistas, outras pelas praças e largos da cidade. Partilhava também com o seu vizinho de cima, outro aspecto de sua vida, isto é, a angústia que essa, inexoravelmente, provoca. Tirol Hiro Lão, porém, dera com uma forma eficaz de a, pelo menos, apaziguar: o álcool; também este uma forma de suicídio, consideravelmente mais moroso, mas que, apesar de tudo, o vinha mantendo vivo.
 Vida essa, que Tirol Hiro Lão, não queria de todo perder, e que após a sua segunda crise hepática, o levara a consultar um psiquiatra comparticipado pelo Estado, passando desde então a ser religioso frequentador das suas consultas. E agora vá-se lá saber o porquê de tantas coincidências, na vida de dois homens distintos, mas passou também a o ser, de Tirol Hiro Liro, que ao chegar à sala de espera do consultório, e ao avistar seu vizinho, o saudou com um frio aceno de cabeça, dirigindo-se depois à secretária, a fim de assinalar a sua presença para a consulta. Volvidos sensivelmente quinze minutos, Tirol Hiro Lão foi chamado: «Senhor Tirol Hiro Lão, pode entrar, fazendo favor.». Ao isto ouvir, Tirol Hiro Liro levantou de imediato a cabeça, que mergulhara num velho jornal, atentando que era seu vizinho, que no consultório entrava: «Curioso» – disse de si para si – «O meu vizinho, tem o mesmo nome e segundo nome, que eu!». Seguidamente a Tirol Hiro Lão sair do consultório, e acertar com a secretária nova consulta, ao se dirigir finalmente para as escadas, que davam acesso ao exterior, reparou que o seu vizinho, já se despedia mais jovialmente: sorrindo, expediu um, bem mais caloroso, boas-tardes, que o seco aceno, aquando de sua chegada à sala de espera.
 Depois da sua consulta, Tirol Hiro Liro retornou a casa, decidido a, coagido por premente curiosidade, questionar Tirol Hiro Lão, acerca da origem, no seu caso, dos nomes que ambos partilhavam, que ele, de sua parte, sabia indubitavelmente a dos seus. Passada a hora do jantar, e arrumada que foi a cozinha, Tirol Hiro Liro desceu ao segundo andar, tocando à campainha da porta do seu vizinho. Pôde discernir, vinda do interior do apartamento, a mais maviosa melodia que alguma vez escutara, não se contendo, encenou logo ali a mais recente coreografia que desenvolvera. Vindo Tirol Hiro Lão atender à porta, sem deixar nunca de tocar a concertina, deparou-se com o seu vizinho de cima, a dançar à sua soleira, confrontado com tal espectáculo, estacou, incrédulo; vendo-se na imediata obrigação de prestar um esclarecimento, Tirol Hiro Liro, explicou o que o levara a vir tocar à sua campainha: como sentira curiosidade, ao ouvir o seu nome no consultório do psiquiatra, tão parecido ao seu, e ao tocar a campainha, como escutara tão bela melodia, que a vontade de dançar, se tornou irresistível. Tirol Hiro Lão, que era, de resto, bastante educado, convidou seu vizinho a entrar, tomaram chá, e dialogaram amistosamente, até à meia-noite. Precisamente a essa hora, ocorreu a Tirol Hiro Liro genial ideia:
 - Porque não unirmos os nossos talentos, vizinho?
 - E onde apresentaríamos nós, o resultado dos ensaios?, nenhuma casa de espectáculos nos aceitaria...
 - Ora ora, não seja pessimista, começámos por baixo, actuamos mesmo na rua.
 - Se é assim, de minha parte não encontra objecção, já que é aí, que faço os meus concertos semanais.
 Tirol Hiro Liro e Tirol Hiro Lão, assim acertaram: todos os dias, pelas seis da tarde, se juntarem os dois à esquina, a tocar a concertina e a dançar o só-li-dó, que era um dos seus variados trabalhos, que Tirol Hiro Liro mais apreciava.

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