Urubu Cultural

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A.F.E.F.D.


 Esta singela historieta decorre, numa época em que todos os tabus sociais, afligidores da Humanidade durante o início do século XXI, estavam completamente resolvidos; a saber, encontravam-se, para todos os efeitos liberalizados: o aborto, a eutanásia, o consumo de todo e qualquer tipo de estupefaciente, a prostituição, o casamento homossexual e adopção de crianças por parte de casais de pessoas do mesmo sexo. Enfim, graças ao crescente esclarecimento da generalidade da população, que por moto próprio procurava instrução e conhecimento, as pessoas deixaram de querer interferir na liberdade do seu próximo.
 Contudo, o senhor Jafo Dias não se encontrava totalmente satisfeito e, certo dia, ao raiar da alva, dirigiu-se célere mais uma vez, aos guichés do Departamento para a Resolução de Tabus Remanescentes. Expondo ao funcionário que o atendeu, com enorme fidúcia e inexaurível determinação, o seu caso, e vendo novamente a sua sugestão indeferida, ergueu o braço direito, de punho cerrado e, em tom de ameaça, ao mesmo tempo que exclamava impropérios: «Vão pró caralho, filhos de puta…», «Vão-se todos foder, paneleiros de merda…», abandonou as instalações do departamento.
 Na tarde desse mesmo dia, Jafo Dias criou a A.F.E.F.D., Associação de Famílias que Escravizam o Familiar Deficiente.


terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A lusitana troika otarídea


 Na branca aridez da tundra siberiana, um pequeno bosque de pálidos abetos, vergados pela fenomenal fúria do vento glacial, tenta resistir; como um grupo de indefesos mujiques, à investida de uma horda tártara. No seu interior, um jovem boiardo, a quem o grosso cafetão, e as toscas botas de casca-de-tília, também não resguardam das trespassantes lâminas gélidas da geada, tenta a muito custo acender um vetusto e ornamentado samovar de prata, com o fim de preparar um chá que, pelo menos, lhe aqueça o espírito, igualmente gelado como o corpo, mas por razão diversa, que mais adiante no conto se dirá qual.
 Pois estava o mancebo, a modos que acocorado diante do samovar, quando lhe pareceu ouvir, atrás de si, uma muito leve e estridente risadinha. Voltando-se súbito, nada viu, atribuindo a causa dessa sensação à fome que lhe atormentava o estômago, ou a alguma arremetida mais vigorosa da silvante ventania, acossando a fina caruma dos abetos. Tornando à sua primitiva posição, reparou, não sem espanto e surpresa, que à sua frente pairava o almofariz da baba Yaga. Esta, por sua vez, fitava-o, de sorriso desdentado, segurando seu pilão numa mão, e na outra a vassoura de bétula. Estupefacto com tão singular aparição, que o rapaz conhecia das ameaças que sua ama lhe fazia na infância, e tendo sido, com o decorrer dos anos, relegado para o plano da fantasia, deixando de acreditar, gradualmente, que em caso de fazer alguma travessura, pudesse mesmo vir a ser raptado, pela velha que tinha agora à sua frente.
Sem mais delongas, a idosa encetou diálogo:
- Então, filhinho, que fazes tu aqui perdido, no meio desta borrasca?
Hesitante, o rapaz a muito custo, titubeou a sua resposta:
- Fujo dos assassinos de minha família…
- Ai sim? – retorquiu a velhota, nunca deixando de sorrir, ao mesmo tempo conferindo a seu tom de voz, um não sei quê de sarcástico.
- Pertenço a uma família de boiardos moscovitas, descendente de portugueses, perseguida agora pelo czar Ivan, o terrível.
- E como te chamas tu, netinho?
- Foma Victorovitch dos Santos.
- Bem vejo…
 Durante o tempo em que decorreu a conversa entre os dois, a baba Yaga nunca fitou seu interlocutor nos olhos, recaindo sempre toda a sua atenção no samovar de prata, agora fumegante, pelo que interrogou:
- Acaso estarias interessado, em trocar teu belo samovar?
- Trocar pelo quê?
- Assim que me lembre, só tenho uma troika, que não carece de cavalo, nem qualquer outra besta de tiro.
Acicatado com proposta tão sui generis, Foma perguntou:
- Então se não tem precisão de besta essa troika, como se move então?
- Estás a ver a minha casa?
- Sim…
- Pois em vez de pernas de galinha, tem esta troika, incansáveis barbatanas de leão-marinho, que impelem os esquis pela neve – confiante de que estava a levar água ao seu moinho, a anciã ainda reforçou sua proposta – Se aceitares a troca, ainda te concedo um qualquer desejo!
Fascinado com o facto de puder vir a ser o proprietário de uma troika automóvel, o mancebo acedeu de imediato à tentadora proposta da baba Yaga, que preste fez surgir na sua frente o fenomenal veículo. Erguendo-se, acto contínuo, o rapaz foi inspeccionar o produto de seu negócio. A velha não mentira, de cada esqui, efectivamente, como que nasciam duas vigorosas barbatanas otarídeas:
- Então…, e como a faço andar?
- Basta que te sentes em cima dela.
- E para parar?
- Basta que te levantes de cima dela.
 Predisposto a experimentar imediatamente seu novo meio de transporte, Foma fez como a mulher disse; instalando-se confortavelmente em cima da troika, logo esta começou a dar às barbatanas com tenacidade tal, que se afastou a toda a brida da anciã, pelo menos, uma makhovaya sazhen. Apesar da má fama que tinha, de comer criancinhas mal-comportadas, a honestidade era uma virtude, como já vimos, que não minguava no carácter da baba Yaga, pelo que acelerou o seu almofariz até alcançar Foma, agora muito satisfeito, percorrendo a nívea estepe russa, como a sua adolescência. Voando ao lado da lépida troika, a avozinha gritou ao moço:
- Então e o desejo a que tens direito?
Sem sequer olhar para o lado, o moço respondeu:
- Quero um nenuco aleijado, para me fazer companhia nas longas viagens, que empreenderei de hoje em diante.




sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Ditadura Duracell


A ditadura Duracell
é talqual o papel,
em que inscrevem
a nossa cruz.

Dura, e dura, é dura
até que vem, pura,
a morte, e truz.

A pior cruz que há,
é a da semi-loucura;
é como cavar com uma pá,
na imberbe ternura.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Obtuso 21







Italiano, é o nome Gattuso.

Gato Gattuso.

Gato sem tusa, de sobrenome Fiuza,
remendos em inglês,
nascido em Fez:
- You are my special angel.
(com órgão a acompanhar)

Nada Muda




“Nada muda!”, exclamava,
e a muda nadava,
o seu treinador exaltado,
por demais amofinado.


A muda nadava por temor,
à pancada tinha horror,
que o seu treinador,
não lhe tinha amor.


Era a campeã dos para-olímpicos,
só perdendo para os paralíticos,
tinha braços musculados,
e cantava belos fados.


Não era muito bela,
mas nadava qual gazela,
tinha celulite,
e conjuntivite.


Porque hei-de continuar?
Com a sociedade a mudar,
vou já mas é parar,
preciso de abrandar.