Urubu Cultural

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sábado, 12 de setembro de 2009

Atropela os peregrinos

 Sempre que estou a dormir ou a desenhar, há uma voz que surge, e me diz: «Vai atropelar peregrinos.».
 Sucedeu-me pela primeira vez, este curioso e estranho fenómeno, certa ocasião em que visionava o telenoticiário, e durante o cujo, exibiram uma peça sobre uma importante romaria. Nesse fatídico dia, e assim que a reportagem terminou, vi-me de imediato mergulhado num profundo coma, que no espaço de três longos dias, me manteve tremendamente agrilhoado, à treva obscura da inconsciência. Terminado este, reparei com alguma repugnância, que estava completamente envolto nas minhas excrescências fisiológicas: ensopado em suor e urina, bem como borrado nos truces e até mesmo nas calças, que certa vez devo ter mesmo estado de soltura.
 Não encontrando explicação aparente para o que me havia acontecido, decidi terminantemente esquecer o caso, e tomando banho, arranjei-me para ir matar alguns gatos à cacetada; percorrendo inúmeras vielas e azinhagas, consegui apenas jogar o cassete de rodeio, nunca satisfazendo completamente os meus intentos, de eliminar um felino sequer. Desiludido, tornei a casa, onde sobre a mesa da sala, após desviar a jarra com jarros, e o naperon, onde em cima do qual esta se posicionava, para uma ponta da mesma, dispus o meu completo estojo de desenho: um bloco de papel tamanho A3, variados lápis de carvão e um pequeno canivete para proceder, quando necessário, à afiação dos mesmos. Assim que fiz o primeiro traço na alva folha, paralisou-se-me de imediato o braço, devido ao cagaço que apanhei, com ter ouvido novamente a voz, a me dizer: «Vai atropelar peregrinos.»; julgando que iria entrar novamente em transe, durante mais três dias, e que acordaria em semelhantes condições de higiene, como na primeira vez, deixei rapidamente o material de desenho, e afastei-me da mesa. Automaticamente a voz cessou, tomado de pânico, decidi preparar um gin com água tónica schwepp's, para me acalmar. Ao tornar ao desenho, e delinear nova linha, voltou a tartárea voz: «Vai atropelar peregrinos.». Deduzi que a prática do desenho a lápis de carvão, vá-se lá saber porquê, estimulava o aparecimento da voz. Bani completamente este passatempo, da minha lista de interesses.
 Decorreu o resto do dia sem sobressaltos, até que finalmente se fez noite: lavei os dentes e os pés, vesti o pijama, e ao pousar o crânio, de modo relaxado, no travesseiro, reapareceu, incisiva qual magnífica dor de dentes, a maligna voz: «Vai atropelas peregrinos.». A partir daqui, já se sabe que não consegui pregar olho, durante toda a noite, nesta e nas que se seguiram, até ao término da romaria.
 Não associando de todo, ao princípio da enfermidade, o facto da duração das romarias e a minha nova condição - chamemo-lhe patológica - serem duais, ao ler, com dois dias de antecedência, num vespertino periódico hebdomadário, um artigo, acerca da realização de uma nova romaria: desta feita em homenagem a Nossa Senhora dos Aleijadinhos Pobrezinhos, por analogia com a primeira situação em que entrei em coma, percebi que talvez a causa que despoletava esta curiosa manifestação, fosse o início das romarias, e o subsequente fim destas, seria também quando a voz, me incitando ao atropelo de peregrinos, cessasse de surgir, ao desenhar e dormir. Foi tal e qual como na minha suposição!, o início da dita romaria, lançou-me novamente em três dias de tenebrosidade, que me fizeram despertar, precisamente, nas mesmas parcas condições de higiene, que na primeira ocorrência. Seguidamente, sobreveio uma semana de martírio, sem desenhar ou dormir, (se fosse arquitecto, não poderia ter trabalhado) até que a romaria teve fim e voltei a ter paz.
 Paz de pouca dura, como o sol por vezes, pois no dia treze de maio, ainda envergando o pijama, ao tranquilamente ingerir fatias douradas regadas com xarope de ácer, como pequeno-almoço, foi transmitido, a quem sintonizava os transístores na Rádio Renascimento àquela hora, que se realizaria, com pompa e circunstância bastantes, nova romaria, seria nesta ocasião, dedicada a Nossa Senhora dos Ceguinhos Marrequinhos. Em terceira, e definitiva, condição de nefando transe, entrei eu mais uma vez, e talvez por ter sido esta a terceira, compreendi finalmente que o atropelo de peregrinos, se ia tornando numa importante componente da minha vida - podendo desta até depender a integridade física e mental da minha pessoa - pois que a incapacidade de dormir durante os dias de romaria, se tornava bastante danosa para o organismo e bem-estar mental.
 À quarta romaria, já tive a clarividência suficiente para reagir, e finalmente me rebelar contra a maldita peste. Munindo o meu fiat uno de: viveres suficientes para uma semana de atropelamento, mantas e o cacete de matar gatos; decidi partir em busca do meu primeiro peregrino. Informando-me nas estações de serviço por que passava, consegui descobrir uma rota de peregrinação e aí esperei, ouvindo música folclórica, de janelas abertas, como o ladino crocodilo submerso, aguarda o sequioso gnú. Passada uma hora, e consideravelmente atordoado pela intensa canícula que se verificava, quase a dormir, ouvi, de repente, um alegre vozear mesmo ao pé da janela do meu carro, era um casal de peregrinos de meia-idade, que me desejava boa-tarde, e que se dirigia devotadamente para o santuário de Nossa Senhora dos Desgraçadinhos Estropiadinhos. Vendo ali uma excelente oportunidade para encetar o atropelo de peregrinos, reflecti durante alguns minutos acerca da melhor forma de o fazer: decidindo por fim, começar pelo marido, sendo que este, mais gordo e possante, no caso de atropelar primeiramente a sua esposa, me poderia partir os
vidros do automóvel com o auxílio do seu bordão, ao inverter a marcha do carro, e seguidamente me capturar e espancar violentamente. Assim aconteceu: partindo duma distância que considerei a ideal para dar uma boa porrada no peregrino macho, acelerei a fundo, até embater violentamente contra as pernas do mesmo e o projectar para a valeta, onde aterrou, inconsciente. Visivelmente atemorizada, a mulher do peregrino correu para onde jazia o corpo inerte deste, talvez na vã tentativa de lhe prestar socorro, ou avaliar o estado da sua condição física; determinado a terminar a tarefa que começara, optei por não atropelar a peregrina, visto se encontrar esta demasiado perto da valeta de escoamento de águas, e com o receio de não travar a tempo, ainda poderia me enfeixar contra a mesma, e partir a direcção do carro, fatalidade que se revelaria bastante danosa, pois o meu automóvel é o único meio com que posso contar, para me evadir rapidamente do local de atropelamento; não referindo as despesas de arranjo, que só no pára-choques já vou ter de gastar um dinheirão, para poder reparar a amolgadela que o peregrino fez. Agarrando no cacete de matar gatos, corri rapidamente para a mulher, aplicando-lhe uma valente bordoada na nuca, que penso eu, a aniquilou de imediato, seguidamente voltei para a minha viatura, abandonando o local a toda a brida.
 Considerando este acontecimento, do seguro e inexpugnável baluarte que é o futuro, torna-se impossível não o definir simplesmente como burlesco, agora um atropelador experimentado, recordar este episódio é, para mim, apenas mais um divertido exercício de humor. Hoje em dia permito-me ao luxo de, por exemplo: num grupo de alguns peregrinos, atropelar só um, e ficar à espera, para apreciar a reacção dos restantes, de semblante carregado de indignação, punho raivosamente erguido no ar, tentando me atingir a viatura com paus e pedras. É quando faço marcha à ré, e atropelo outro...

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