Urubu Cultural

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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Sem título

Arrastando-me por este templo pesaroso, que é a vida quotidiana, com os pés quotidianamente submersos em lodaçal pantanoso, sou a hiena putrefacta, que se absteve de tudo. Sou o Messias da desgraça, sou o cavaleiro, que transporta a peste consigo. Espalho a morte e a doença, não sou mais que um miasma, um fogo-fátuo, que é prontamente absorvido, pela atmosfera conspurcada dos cemitérios.
Sou o pai que viola a sua filha, sou o paradigma da desgraça, ténia maldita que, envolta em dejectos, parasita titanicamente o seu hospedeiro. Não conheço a piedade, ou a clemência. Não sou deus. Não sou.
É com uma gargalhada gutural, que sufoco recém-nascidos, num balde de água-raz. As minhas unhas negras, estão tão manchadas de sangue, como as espadas de mil exércitos Vândalos.
Exércitos do Apocalipse, que marcham incessantemente nos seus uniformes, purpúreos como o interior de uma ostra. O cancro da Humanidade, uma lepra demoníaca, que me desfaz lentamente, na madrugada gélida duma aurora de inverno glaciar.
A estátua de mármore ergue-se, herética, sem braços, ante a morte que se avizinha. Um urro no universo de uma outra dimensão paralela, a dialéctica ineficaz dos sofistas, falácia fatal, ilusão pré-programada para a desgraça. É isto um poeta da discórdia…, uma cartilha maternal em desalinho. A professora primária que espanca um aluno sardónico, a Morte que lhe insufla as veias de prazer, que o faz não temer, mas que por outro lado, lhe dá a conhecer tudo o que a matemática e a poesia da esfera celeste, que sem querer procria incessantemente no ventre de uma mula sem cabeça, sem pedir desculpa.
Um náufrago aleijado, cujo pai lhe comeu os braços tépidos e musculados, uma vagina em flor, que expele esperma inócuo, sem parar. Sou a razão pura, sou a razão analítica e sou a metafísica dos costumes. A origem de todos os males não está aqui, procura-a sem cessar, sou um soldado alemão, a quem lhe foram amputadas as pernas, mas que metralha sem parar.
Por mais desgraçado que me torne, há sempre um nó que me tolhe a garganta, um bastão que espanca sem parar. Não tenho mais tempo para esperar. A vida, suga-nos num turbilhão de piranhas sedentas de sangue, onde a razão não impera de todo; a razão, essa fera que nos devora por dentro. Sou o ostracizado da nação, sozinho nas descrenças e nas discórdias de espírito, que uma rapariga sem braços, núbil, pode representar.
A carcaça torpe e disforme afigura-se, segura, na praia dos meus desejos, manifestos ansejos de um sonho de verão, interrompido pelo clamoroso trovão, que é a origem de todas as sociedades ocidentais.
Sou o herói que corre, eloquente, na vanguarda de um exército de moribundos, sou o primeiro a receber a bala, que me dilacera a maçã-de-adão, sou o guerreiro das sarjetas, sou o cavalo de batalha da nobreza decadente, que destila ódio por todos os poros, cego de dor, guerreio sem mágoa, sem trégua, os meus companheiros caiem como árvores abatidas, no campo de batalha, o relinchar dos cavalos mutilados é por demais ensurdecedor, é um clamor que me impossibilita a acção voluntária. A desolação que o combate traz ao espírito e aos olhos de um guerreiro, é indizível. São pedaços de Humanidade, espalhados por todos os campos, e hortas, e pomares, da região. Não matam o porta-estandarte, por uma questão de tradição. Vejo homens que cavam a sua própria sepultura, com mão nuas, que renegam o progresso da indústria do século vinte. Acordo, sozinho no cemitério, todos os meus companheiros estão mortos, os cavalos ainda relincham, mais eis que se ergue o sol, e o meu rosto, negro de sangue coagulado, se ilumina subitamente, cálida carícia de uma virgem.

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