Urubu Cultural

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terça-feira, 22 de junho de 2010

Hino de Gandembel

Não é de todo prática comum, publicar no blogue, obras de autores alheios ao mesmo, porém, não posso deixar de abrir uma excepção, e partilhar convosco, estimados leitores, o Hino de Gandembel. Faço-o, na vã tentativa, de que os jovens do nosso Portugal, que andam por aí pelos bares e discotecas a se embebedar, tomem conhecimento do sofrimento dos nossos soldados nas províncias ultramarinas. 

Ó Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

- Meu Alferes, uma saída! -
Tudo começa a correr.
- Não é pr’aqui, é pr’ponte! (i),
Logo se ouve dizer.

Ó Gandembel,
És alvo das canhoadas,
Verilaites (ii) e morteiradas.
Ó Gandembel,
Refúgio de vampiros,
Onde se ligam os rádios
Ao som de estrondos e tiros.

A comida principal
É arroz, massa e feijão.
P’ra se ir ao dabliucê (ii)
É preciso protecção.

Gandembel, encantador,
És um campo de nudismo,
Onde o fogo de artifício
É feito p’lo terrorismo.

Temos por v’zinhos Balana (i),
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três (iv) te protege.

Bebida, diz que nem pó,
Só chocolate ou leitinho;
Patacão, diz que não há,
Acontece o mesmo ao vinho!
Recolha: José Teixeira / Revisão e fixação de texto: L.G.

(i) A famosa ponte sobre o Rio Balana, destacamento da CCAÇ 2317 (que estava em Gandembel, Abr 68/Jan 69)
(ii) Verylights
(iii) WC
(iv) A espingarda automática G-3

Hino de Gandembel na sua versão músicada

O cardo com um péssimo e longo historial de depressão unipolar


 Era uma vez um cardo roxo, no meio de uma clareira do bosque, ou na serra de Monchique (cabeça tapada, e o cu que se trompique!).


 O cardo chorava muito; muitas lágrimas de seiva murcha, lhe pingavam fácies abaixo. Tomava muitos anti-depressivos e ansiolíticos, mas nada parecia granjear-lhe melhorias psíquicas ou físicas (pareço um médico a aviar uma receita).


         O seu amigo urso do circo, tentou em vão, numa manhã de primavera, cheia de orvalho como o caralho, animá-lo. Contou-lhe anedotas picantes (por serem as mais adequadas aos cardos!), elaborou intrincados exercícios de malabares, montado no seu monociclo, fez-lhe cócegas nas axilas, até que desistiu.


         Quem conseguiu, por fim, fazê-lo rir, foi o javali Serafim Mendes:


         - Ri, cardo… Ri, cardo Ricardo!

Ricardo era o nome próprio do cardo, que achou uma piada imensa ao trocadilho.  

domingo, 20 de junho de 2010

O Enxame

Quando findou o Mundial de Futebol de 2010, o Mundo nunca mais foi o mesmo. Tudo começou enquanto celebração de vitórias e conquistas, convívio entre povos. Era uma saudável compulsão, um pulsar incessante, uma nefasta vontade e necessidade de soprar a malévola corneta. Depressa percorreu o planeta, como uma pestilenta doença que infectou as populações. Por todo o lado se começou a ouvir o penetrante zumbido, provocando irritação, desregrada a pungente necessidade em soprar. Não era concebível ou sequer possível cessar… aos poucos o próprio organismo exigia a audição dos sons que das mesmas expeliam em urros sucedâneos. Invadiu cidades, países e continentes. No Verão de 2011 estimava-se que 96% da população mundial estivesse infecta com a necessidade de sopro. Não tardou o caos e a violência… de início danos permanentes e irreparáveis de audição. Depois com a crescente irritabilidade que provocava nos poucos que insistiam em não padecer desse mal, chegou a demência; suicídios, homicídios… Outros inclusivamente perante o ensurdecedor zumbido que se ouvia por todo o lado, soçobraram e paulatinamente foram absorvidos pelo fervor sonoro, sentindo-se inclusivamente impelidos a tocar e em plenos pulmões soprar furiosamente. Um estudo mundial de um censo à escala global estimava que por volta de meados de 2016, em média um agregado familiar de quatro elementos dispunha de dez vuvuzelas por habitação. Estavam por todo o lado… e espalhava-se com uma violenta voracidade, a todos destruindo e a todos inebriando com o monótono zurzir repetitivo que, ou causava loucura, ou infectava como uma inconcebível e misteriosa obrigatoriedade em grunhir do mesmo estes zumbidos…
Aos 4% de cidadãos do Mundo a quem esta temível virose não afectou, restava-lhes fugir para zonas periféricas onde imperasse alguma, ainda que diminuta noção de paz e silêncio. No entanto esta doença indiciava uma reviravolta, quiçá de maior vilania até que a urgente e enigmática perversão tenebrosa de cariz auditivo. Com o tempo, aqueles aos quais seus tímpanos não explodiam perante as repetições que flutuavam por todo o lado, começavam a padecer de terrores de igual desespero. O organismo estava habituado aos sons contínuos, e, perante o harmonioso silêncio que a distância das cidades lhes provocava, seus cérebros inchavam para lá de tamanhos razoáveis ou humanamente suportáveis e concebíveis, e ao não conseguir aguentar, acabavam por rebentar. Os anos passavam e os humanos findavam… sim porque era disso que se tratava. Um rápido dizimar da espécie. Algo mais nascia neste Mundo… de início uma espécie de híbrido entre humano e viciados… como drogados à escala planetária. Se ao menos fosse música, mas não… de todo. Por volta de 2019 restavam pouco mais de 200 seres humanos, humanos legítimos, é bom frisar… viviam refugiados em colinas e montanhas, outros em praias, onde os sons genuínos da Natureza ainda estivessem sob controlo… de alguma forma. Fugiam das vuvuzelas; temiam ficar viciados e também eles sentissem a vontade em soprar e arremessar da alma e com a força da garganta os fortes gemidos graves.
Nas cidades, os híbridos de humanos e algo mais que até é difícil qualificar e descrever prosseguiam os rituais. Já não havia diálogo entre ninguém… limitavam-se a bafejar no objecto incessantemente. Raramente paravam sequer de tocar, e das raras vezes que o faziam, havia sempre alguém ao redor que prosseguisse os sonoros. Não fosse existir um minuto sequer de silêncio. Nem se sabe que temíveis consequências daí adviriam. Algures em 2024 um reputado cientista do Burkina Faso concebeu uma espécie de linguagem experimental através da vuvuzela, o que, em boa verdade até eliminava de certo modo o carácter contínuo e repetitivo do som, formando sons repentinos de sopros rápidos que tentavam formar uma aproximação fonética a alguma espécie de vocabulário que suprimisse por inteiro a comunicação vocal. Quando dormiam havia sempre alguém que fizesse soar as cornetas… As noites eram asseguradas por oficiais dos Governos, ou cidadãos anónimos, que se revezavam entre eles para que os zumbidos nunca parassem sob pretexto algum.
Estavam de tal modo compelidos nestas viciosas exigências, que paulatinamente deixaram sequer de se alimentar pelos métodos comuns de ingestão pela boca. A mesma era agora fonte de outras actividades. Passaram a fazer implantes, e tubos ligados directamente na barriga que asseguravam a sua continuidade.
Sexo era supervisionado por terceiros que tocavam vuvuzela durante a cópula, ou, caso o casal em questão sentisse desconforto perante a situação de cumplicidade íntima, um dos intervenientes no acto asseguraria que os urros estariam presentes, intercalando por vezes com o outro integrante nas actividades de cariz erótico. Destes híbridos comatosos viciados nasciam crianças com estranhas mutações. Alguns nasciam com tamanho de comuns bebés, mas com formas diferenciadas… corpos em metades entre humanos e abelhas; vários com corpos de abelha por inteiro. Aos primeiros dias zumbiam naturalmente por vontade própria, mas depois emudeciam por inteiro ao completarem um mês de existência. A esta nova estirpe eram cozidas vuvuzelas nas bocas, para que o choro os fizesse exalar os sons da mesma. E assim os humanos eram cada vez mais uma espécie no limiar da extinção… a estes novos seres era dada a designação de Vuvumanos. E assim prosseguiam os zumbidos em milhares de vuvuzelas por todos os lados vinte e quatro sobre vinte quatro horas.
Uma vez por outra, alguns ousavam tentar parar. Faziam força e abandonavam… era pior que uma droga, que elevadas doses de álcool, que o prazer do tabaco… aliás esses vícios há muito que não existiam. Este vício, digamos assim, nem sequer se ancorava em noções de prazer e agradabilidade, talvez no início quando a epidemia começou em África durante a celebração futebolista e se espalhou como o rastilho de um fósforo a acariciar as labaredas em língua de fogos. Agora era uma obrigatoriedade. Quando tentavam cessar, sentiam que lhes faltava a respiração, o coração em acelerados trombos, a boca irrequieta sem saliva, a garganta nervosa, o cérebro que zurzia desesperado perante a quietude.
Para os poucos que não concebiam suportar este irritante som, os poucos que não pereceram, enlouqueceram ou cederam… refugiados bem longe, imunes ao silêncio, adoradores da paz, avessos às perturbações orgânicas que os estímulos do agente agressor lhes pudesse causar, decidiram unir-se e deixar de esconder e fugir.
Das praias, colinas e montanhas e demais espaços isolados no limiar da adorada acalmia, surgiam exércitos de homens e mulheres, em nome de valores de decência sonora começavam a se insurgir. Durante anos prepararam um ardiloso plano de acção com o expresso intuito de restabelecer a Humanidade e destruir a corneta demoníaca. Um exército de meras centenas, mas com sua coragem teriam a força de milhares.
Em Agosto de 2030, o exército de humanos imunes ao silêncio, composto por pouco mais de uma centena, invadiu uma cidade… munidos de metralhadoras, pistolas, espadas e demais armamento, dispararam e assassinaram à descrição a todos que passavam. Os Vuvumanos, coitados, indefesos apenas podiam ripostar soprando nas vuvuzelas. Muitos dos humanos pereceram quando seus crânios implodiram face à insuportabilidade de escutar o som grave. Em resposta os Vuvumanos eram alvejados na cabeça, num tiroteio certeiro que fazia com que mel jorrasse de suas cabeças e escorresse igualmente dos seus cadavéricos seres executados.
A contenda prosseguiu por largos meses até tomaram esta cidade. Certo é que o Mundo estava infecto, mas nascia aqui o dealbar para a importante batalha.
Enxames de crianças e homens e mulheres e velhos vuvumanos foram capturados e queimados nas praças; vuvuzelas pisadas e quebradas…
Em Fevereiro de 2031, os céus azulados foram inundados por copiosas chuvadas que percorreram a Europa. Coléricos ribombos varreram à sua passagem… no entanto os violentos sons das chuvas traziam música… sim, inexplicavelmente caía música dos sons das águas, ritmada, melódica, furiosa e tenebrosa gritava bem alto enquanto embatia nos solos. A chuva trazia melodiosas músicas que suplantavam os urros e grunhidos graves dos zumbidos das cornetas… ventanias imponentes sibilavam estes sons percorrendo espaços para lá de onde a vista poderia alcançar.
E assim esta malévola estirpe de híbridos do Homem, nascida de um aparente e absurdo fascínio em soprar continuamente numa corneta, formando sons monocórdicos causadores de nervosismo e irritação, e igualmente de misterioso vício foi lentamente destruída da face da Terra pela música que através da sonoridade abafou os grunhidos…
No fim desta batalha restaram pouco mais de oito humanos imunes ao silêncio, genuínos seres da espécie. Alimentavam-se agora do mel dos corpos dos mutantes derrotados. Desses oito, sete eram homens e só havia uma mulher.
À vez, os sete copulavam com a fêmea com o firme intuito de repovoar o planeta. Quando os mesmos a deixavam sozinha para procurar por corpos e mel para que sobrevivessem, a mulher refugiava-se num canto da cidade, bem longe das suas vistas e de seus ouvidos, onde escondida entregava-se ao seu derradeiro e secreto prazer… guardara uma das raras vuvuzelas que não foram destruídas.
Soprava, como a mulher soprava… permitindo-se saciar o enigmático vício.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

É imperceptível, a nudez
a que o âmago da alma,
se submete, nos sábados-de-aleluia.

Estou doente, com a soberba
dos animais invertebrados,
que cantam o fado.

Marmelada, em papo-seco
entalado.
Ananás enlatado.

No Tempo

 O esqueleto Armando, cá vai andando..., umas vezes a pé, até que estaca, surpreendido pela imensidão de suas facécias juvenis, pueris. Caçador reputado, não sabia cantar o maldito fado, (que não me sai da cabeça).
 Certo dia apaixonou-se, e não foi pêra-doce, porque a esqueleta era sua prima, «...aquele horrível e incisivo e aquilino, mascar de chiclete...». Apeteceu-lhe lavar a boca com sabonete Distante, de tudo... embora as suas incumbências militares, lhe tivessem travado a ambição natural à sua espécie, de caldeirada em punho.
 Urrou até ao meio-dia e meia-hora, altura em que arrumou as algibeiras, e foi cantar nas orelhas de um poeta, alagado em musgo verde de Sintra.