Urubu Cultural

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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O idiotismo de Putilde, ou o sofrimento de Maurício

Era uma vez, há não muito tempo atrás, uma família disfuncional. Era constituída: pelo pai, que garantia os rendimentos, pela avó paterna, responsável pelas tarefas domésticas, por Putilde, uma jovem idiota de catorze anos de idade e por Maurício, irmão três anos mais velho, entrevado graças à brucelose, e sem mãe.
Viviam nos arrabaldes de uma cidade de mediana dimensão, onde esta termina e o campo começa. Numa casa outrora bastante distante da urbe, mas que, com a expansão extra muralhas desta, gradualmente se foi aproximando, não ficando a mais de três ou quatro quilómetros. Era a habitação demasiado humilde e singela: telha de barro vã, grossas paredes de taipa com contra-fortes e janelas carunchosas, assim como, podres da humidade; embora pobre, porém, era algo espaçosa, contando com: três quartos, uma cozinha com uma pequena despensa e uma casa de jantar.
Todos os dias, e ainda mesmo antes do sol nascer, partia o patriarca para a sua labuta diária: o amanho de uma pequena parcela de terreno arrendado, garante do sustento de todos, onde Ilídio trazia umas couves, batatas brancas e, onde inclusivamente, também tinha algumas árvores de fruto. Pela hora do almoço, partiam a avó e Putilde de casa, a levar esta refeição a Ilídio, que comia mesmo na horta, para não perder tempo na deslocação.
Foi uma vez mais, sem suspeitarem absolutamente de nada extraordinário, que avó e neta abalaram de casa, munidas do almocinho de cortiça contendo a refeição e, meia garrafa de vinho. A caminhada pelo costumeiro caminho de cabras, tomou-lhes os invariáveis trinta minutos quotidianos, entre o monte e a horta. Contudo, quando lá chegadas, depararam-se com o que não era de todo usual: Ilídio rodopiava, ao sabor da leve brisa que soprava, pendurado pelo pescoço a uma robusta pernada, de um grande pinheiro-manso, qual títere inanimado. Sua face, assumira já um tom arroxeado, indiciando que se havia enforcado logo pela manhã. Confrontada com esta funestíssima visão, Deonilde perdeu, acto contínuo, o equilíbrio, turvando-se-lhe também, as duas vistas; apoiando-se em Putilde, que a fitava com o olho algo estrábico e esgar sorridente estampado na cara, não aguentou por muito mais, acabando por cair por terra, debalde murmurou ainda alguns monossílabos à neta, que manteve sua habitual expressão zote. Morreu a trinta de Junho, Deonilde Carrascalinho.
Putilde ainda por ali ficou alguns minutos, (onde seu pai se enforcara e sua avó fenecera, com uma trombose) de garrafa na mão, olhando em derredor a natureza, escutando o mavioso chilreio dos passarinhos, observando como o tépido zéfiro penteador, acariciava as copas dos imponentes pinheiros, as doiradas coirelas de trigo oscilante, as carochas escalando os torrões, enfim, todo o seu mundo, a totalidade do que conhecia, não compreendendo o porquê, do pai estar pendurado numa árvore, e a avó inanimada no chão. Ao cabo de um quarto de hora de contemplação, e devido a um qualquer misterioso desígnio, resolveu tornar a casa.
Maurício, que aguardava, como em todas as tardes, pacientemente deitado na cama, pela chegada da avó, pois era a quem devia sua parca higiene e alimentação, inquietava-se com o decorrer do tempo. À hora crepuscular, já um enorme turbilhão de nefastas ideias, sobre o que poderia ter sucedido à sua família, lhe dominava o espírito, mergulhando-o num estado de premente ansiedade; como se não bastassem os nervos alterados, uma forte necessidade de defecar, fez com que toda esta situação, culminasse em enorme terror e choro descontrolado.
Encontrando-se Maurício, já muito próximo da lipotimia, quando escutou, vindo da cozinha, um entrechocar de tachos ou panelas, tomando um pouco de ânimo, perguntou:
- Avó? É a avó que está aí?
Não obtendo qualquer tipo de resposta, resolveu aguardar uns segundos, até que tornou:
- Pai, é o senhor?
Sem conseguir mais uma vez resposta, e batalhando herculeamente com o seu esfíncter, Maurício lembrou-se que só poderia ser Putilde, que por ali andava. Não se enganava, era mesmo sua irmã, que depois de ter abandonado os cadáveres de seus familiares, andara deambulando, de garrafa de vinho na mão, pelo campo fora, retornando agora somente a casa, com o escurecer, motivada pela fome.
Era essa necessidade que Putilde tentava satisfazer, quando despertou a atenção de Maurício, fazendo com que este, chamasse pela avó, pelo pai, e agora, por ela:
- Putilde, ajuda o mano, o mano precisa de fazer cocó, Putilde! – bradou o mancebo
A rapariga emitiu um gemido, ao reconhecer o seu nome, porém não fez caso, continuando a deambular pela cozinha, em busca de alimento. No quarto, Maurício gritava pela irmão como um louco furioso, sentindo que a sua capacidade para aguentar as fezes, ia progressivamente diminuindo, (podendo-se até estabelecer aqui, um paralelo entre, a incapacidade de reter as matérias fecais, e o aumento do desespero). Por sua vez, Putilde continuava, com grande afã, a tentar reproduzir as tarefas, que tanta vez vira sua avó executar: batia com o colherão de pau no fundo do caldeirão, punha lenha debaixo deste, fazia enormes cortes no tampo da mesa, com toda a sua força. Acompanhava todo este ritual, com enormes gritos, intervalados por gemidos imperceptíveis, que cada vez mais enfureciam Maurício, resistindo estoicamente aos seus intestinos. Culminou toda esta situação, com o crescente delírio de Putilde, agora batendo em tudo o conteúdo da cozinha, partindo canecas, amolgando tachos, num frenesi que, no seu auge, a obrigou a se deitar no chão, quase apopléctica, sem forças e arfando. No exacto momento, em que se fez silêncio na cozinha, Maurício deixou de conseguir conter as suas fezes, acabando por obrar na cama, engasgado de vergonha e inépcia, sujou a camisa de dormir e o lençol (o colchão não tinha resguardo).

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