Urubu Cultural

Urubu Cultural

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Casamento em Estado Novo

Foi em mil novecentos e cinquenta,
Vestida eu, toda de branco,
Trocámos nossas alianças,
(o amor é assim, não se aguenta!)
Graças ao empréstimo do banco,
Pois andavas mal de finanças.

Com a vinda de nosso filhinho
Sérgio, em tua honra baptizado,
Entregaste-te, de todo, ao vinho,
Que fez de ti um celerado.

Quando o Benfica perdia,
Socavas-me qual poste,
Gritava, chorava e gania,
Batias-me com o cinto Lacoste.

Pelo raiar da alvorada,
Pedias perdão... Eu, maltratada
Dizia, de olho à Belenenses:
“Gosto de ti, não penses!”

Batia por ti meu coração,
Com a mesma energia,
Com que tua áspera mão,
Quotidianamente me agredia.

Despediste-te na cozinha,
Ias comprar SG Gigante,
Para sempre desapareceste,
Partiste como emigrante,
Disse-me nossa vizinha.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Descobrimentos e Expedições


 Era uma vez um botânico, na grande bacia do Amazonas cheia de humidade, que certo dia descobriu um roque no Amazonas, durante uma expedição. Durante a idade do gelo, os couros de campanha do caiaque, encalharam num recife dos trópicos, onde se erguia um yurt, do povo Shoshomi. Um galeão satélite, com telégrafo submergível, de um mercador de Meca, jesuíta; afundou um junco com escurbuto, no equador, a uma longitude sem espécie.
 Outrossim na Malásia, um currach, serviu de intérprete a um criado de quarto, acendedor de incenso do Grande Cão geógrafo, praticante de homicídio e, condenado pela civilização a estudar zoologia e navegação, junto do povo Inuit. A seda do missionário muçulmano, foi roubada por cossacos de bússola, a um peregrino com mirra no trenó, gérmen de um motim.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A traição é o veneno da paixão


O estranho botão-de-punho...
De meus todos, diferente.
Descoberto no mês de Junho,
Em nosso leito, ainda recente.

«Pergunto porquê, Graciette,
Tanto mal me fizeste?»
Ante tal traição tão evidente,
Choraste apenas, sua indecente!

Olvidaste o santo altar,
Onde não se mente,
Onde juraste me amar,
A toda a hora, eternamente!

Para quê todos os adornos:
De jade, ouro e prata?
Ofertas a uma ingrata!
Que só me deu um par de cornos...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O Reflexo


São quatro da manhã. Oiço na ruas os ronronos industriais da máquina trituradora e engolidora do veículo dos homens do lixo a processar os nossos dejectos. Aqui estou no meu quatro, sozinho no escuro... Acompanha-me uma luzinha muito suave do monitor de um computador portátil que me ofusca as vistas com seu brilhante cintilo. A luz azulada de um disco externo que pisca em intermitências inconstantes projectando na janela o meu reflexo de perfil. Lembro-me de o ter olhado de soslaio, quando repousava as vistas. Parece que o meu reflexo se modifica em transfigurações... ali está intacto e quieto, parece que me aguarda... afinal sou eu o lado real e o controlador... mas depois fitando-me pelo canto da íris, o reflexo parece aumentar suas formas. Como se fosse uma mancha de tinta numa folha de papel branco... A luz azulada ilumina-o num ângulo de baixo para cima... o pescoço está visivel, mas depois o rosto é uma paleta disforme de uma sombra com misteriosos contornos que formam a minha face... como se a própria noite salpicasse de tintas uma caricatura abstracta de mim mesmo. Observo o meu reflexo, iluminado pela luz não natural de um objecto orgânico. Assusta-me de certo modo ver esta forma, sou eu mas ao mesmo tempo já não sou, pois se me reflecte já não serei eu, em boa verdade... Vejo a mancha a alastrar e a ocupar mais espaço no vidro da janela de meu quarto... deve ser um sinal de que está a crescer. Mas porquê? E para onde? Às vezes parece que se mexe antes que eu mesmo me mexa. Outras apenas ali está com sua função natural de me projectar ao sentir o abraço da luz. Enquanto a olho, também me olha de volta... pois se é o meu reflexo é sua obrigatoriedade me fitar de volta enquanto a confronto. Mas não pára de crescer... apoderando-se gradualmente de mais e mais centímetros da minha janela. Enquanto escrevo, algo de inesperado acontece... para o qual não estou precavido nem sequer compreendo tamanho fenómeno... Ao premir as teclas do portátil, as mesmas afundam-se pausadamente, desaparecendo numa espécie de caixa negra que se vai formando e aumentando à medida que as teclas se evaporam. Letra a letra... A minha mão entra neste buraco negro, é fundo... Insiro e retiro alguns dedos... depois mergulho a mão... Elevo o portátil acima da mesa, tentando discernir este misterioso buraco. Tudo normal. A mesma mesa de pinho... Não há qualquer abertura na extremidade do portátil. Investigo esta caixa negra de profundidade assinalável que surgiu no painel do teclado. Num acto irreflectido e imediato, submerjo o rosto neste vácuo que substitui o teclado... Um profundo buraco negro sem fim. O medo cobre-me as têmporas, servindo-se depois de um fino manto que me cobre as carnes por inteiro. Apresso-me a tirar o rosto deste misterioso portal, ou que raios será... Olho para a minha esquerda, onde está a janela do quarto. Errado. Não está lá janela alguma, nem a persiana corrida, muito menos a mancha do meu reflexo. Ao olhar para a esquerda vejo a rua do meu apartamento. Mas do lado de fora... Nem sequer é através do vidro. Uma brisa calma e suave como um murmúrio assobia-me por entre o tímpano. Mas onde estou? Não estou no meu quarto, mas também não estou para lá do meu apartamento. Ao olhar para a direita, vejo tudo turvo, como um picotado de diminutos quadradinhos que formam imagens... Estou dentro da janela... e os quadradinhos pertencem à persiana... O reflexo que anteriormente não era mais que uma projecção ampliada por uma ténue luz, apoderou-se do lado real e ali está fitando-me sem pestanejar... do outro lado. Mantém seu formato meio que abstracto, o corpo uma mera silhueta de sombreados dispersos. E aqui me sinto em expansão... tanto física, (pois o repuxar de carnes e músculos alarga-me para um formato de complexas descrições) como metafísica, pois estou dentro e em simultâneo fora de mim. A sombra apoderou-se do real... Nem sei que raio vai fazer. Talvez viver o meu quotidiano, as minhas vivências, aqueles que me rodeiam, meus sonhos e anseios... E eu? Talvez desapareça numa névoa de claridade quando a luz se acender ou o Sol abraçar a janela pela manhã.