
Não mencionei ainda o quão habilidoso este cavalheiro também era. Este sucateiro sentimental, que da tristeza fez um género musical. Conseguiu matematizar a alma e chamou ao produto da conta: fado, sabendo já de antemão ao que estaria destinado. Depois fabricou uma guitarra, a que chamou Portuguesa e, na duma taberna mesa, ensinou-a a chorar. Essa machina-lacrima, que tinha o curioso dom, de mutar a amargura em som. Então juntos, entabularam a mais bizarra cerimónia, contaminando os ouvintes com pungente acrimónia (a estes chamou mais tarde Portugueses). De pé ou sentado, a todos cantou o fado, (coisa estranha de se ver!) ninguém debandou, apesar de descrever a mulher que o nunca amou, a mocidade perdida ou o desespero da mãe, cujo filho vai de partida.
Ontem fui pela última vez ver o ancião ao lar da terceira idade, lá continua a fitar o vazio de olhar estranho e frio, só ainda vai sobrevivendo graças a um nutritivo preparado confeccionado maioritariamente à base de couves-de-Bruxelas, não fosse este pequeníssimo mas muito nutritivo vegetal, já tinha desfalecido o velho Portugal. Outrora muito crente, agora recusa-se a atender ao serviço religioso, obriguem-no, e torna-se assaz belicoso; chegou até ao infeliz ponto de querer expropriar o senhor padre cura: da carteira e das ornamentadas chinelas de carneira! Ainda assim o vetusto de quando em vez, durante os raros períodos de lucidez, consegue gritar: de alegria, quando jogam os “Belenenses”, ou de arrelia, se lhe subtraiem os pertences. Barafusta só, coitado, quem o quiser roubar rouba à vontade, já lá se foi o tempo em que era ele a tirar, servia-se do que queria e mandava-te calar.
Desculpem se um pouco a voz me embarga agora, meus amigos, mas ontem ao ancião Portugal cortaram a barba, lá foi embrulhado numa mortalha a enterrar, sem família chegada, principalmente por só dívidas deixar, fui o único a atender às exéquias. Um dos coveiros, (deviam ser alguns cinco ou seis) partiu-lhe a guitarra em dois e jogou-a para a cova, quando terminado o serviço, cada um à vez escarrou na laje tumular, que na integra acabei por pagar. Coloquei o ramo de flores-de-plástico, e li assim no epitáfio:
“?-?-1143 – 12-06-1985, Aqui jaz o velho Senhor Portugal, morto de desespero e mingua de sangue na guelra, eterna saudade de suas esposas, filhos e restantes familiares. Não esperamos de todo que volte a ser o que era dantes, porque águas de bacalhau vêm e vão com o vento, e se não nos caem uns dentes como represália, vão-se os anéis, sem que para isso seja preciso preencher uma infinidade de papéis.”Acho que é o bastante por hoje, não falemos mais em desventuras que, mesmo as omitindo elas não pedem licença para se instalar e ficar à lá garder, vamos esperar, todos em seus lugares de eleição, costas bem unidas ao espaldar da cadeira, tacões dos sapatos de verniz bem juntos, e acima de tudo, bem comportados. Comecemos por ensaiar uma sentida e profunda, (até ao coração de preferência) oração, estudantes de todas as partes, apliquem-se num valoroso esgar, e penitencial genuflexão. Vem aí a marcha dos veteranos, os meninos, de bata branca, não têm autorização de encarar os senhores, mantenham-se de cabeça baixa e, sobretudo, nada de contacto visual.
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