Urubu Cultural

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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O conto do velho chamado Portugal

Era uma vez um velhote chamado Portugal, um idoso, posso afirmar, e afirmo com certeza, fundamental. Foi fundamental. Agora dão-lhe comida de babete e avental, está acamado desde que a um de dezembro de mil seiscentos e quarenta perdeu a independência, e demoram a mudar-lhe a fralda, quando sabem que sofre de incontinência. É um velhinho trôpego, coxo duma perna, (talvez ciática, que nem os chineses com ferros em brasa desta vez vão tratar) cego dum olho, (provavelmente cataratas, que por cá faz muito sol) e com uma barba de rubro laivada (atentemos em seus olhos e eis a chaga de onde brota a saudade retinta, de juventude faminta). Portugal tem um cajado feito à mão, muito bem trabalhado, perdeu sua velha bengala, de oiro entalhado, e fizeram-lhe esta em samouqueira, que agora descansa à cabeceira. O velhinho chamou Alentejo ao seu apoio, pois que sua rijeza lhe lembra os jornaleiros, os cabos das suas enxadas, não sabe bem..., as memórias já vão ficando esquecidas, apagadas. Porém, no coração ainda conserva recordações indeléveis: lembra-se do cheiro a mar, do vinho do Porto o cheiro a mosto, e quanto custa ter um desgosto. «Não foram demenos!» diz-me o senhor Portugal, numa voz grave e rouca, «O que eu passei não foi coisa pouca...».
Não mencionei ainda o quão habilidoso este cavalheiro também era. Este sucateiro sentimental, que da tristeza fez um género musical. Conseguiu matematizar a alma e chamou ao produto da conta: fado, sabendo já de antemão ao que estaria destinado. Depois fabricou uma guitarra, a que chamou Portuguesa e, na duma taberna mesa, ensinou-a a chorar. Essa machina-lacrima, que tinha o curioso dom, de mutar a amargura em som. Então juntos, entabularam a mais bizarra cerimónia, contaminando os ouvintes com pungente acrimónia (a estes chamou mais tarde Portugueses). De pé ou sentado, a todos cantou o fado, (coisa estranha de se ver!) ninguém debandou, apesar de descrever a mulher que o nunca amou, a mocidade perdida ou o desespero da mãe, cujo filho vai de partida.
Ontem fui pela última vez ver o ancião ao lar da terceira idade, lá continua a fitar o vazio de olhar estranho e frio, só ainda vai sobrevivendo graças a um nutritivo preparado confeccionado maioritariamente à base de couves-de-Bruxelas, não fosse este pequeníssimo mas muito nutritivo vegetal, já tinha desfalecido o velho Portugal. Outrora muito crente, agora recusa-se a atender ao serviço religioso, obriguem-no, e torna-se assaz belicoso; chegou até ao infeliz ponto de querer expropriar o senhor padre cura: da carteira e das ornamentadas chinelas de carneira! Ainda assim o vetusto de quando em vez, durante os raros períodos de lucidez, consegue gritar: de alegria, quando jogam os “Belenenses”, ou de arrelia, se lhe subtraiem os pertences. Barafusta só, coitado, quem o quiser roubar rouba à vontade, já lá se foi o tempo em que era ele a tirar, servia-se do que queria e mandava-te calar.
Desculpem se um pouco a voz me embarga agora, meus amigos, mas ontem ao ancião Portugal cortaram a barba, lá foi embrulhado numa mortalha a enterrar, sem família chegada, principalmente por só dívidas deixar, fui o único a atender às exéquias. Um dos coveiros, (deviam ser alguns cinco ou seis) partiu-lhe a guitarra em dois e jogou-a para a cova, quando terminado o serviço, cada um à vez escarrou na laje tumular, que na integra acabei por pagar. Coloquei o ramo de flores-de-plástico, e li assim no epitáfio:
“?-?-1143 – 12-06-1985, Aqui jaz o velho Senhor Portugal, morto de desespero e mingua de sangue na guelra, eterna saudade de suas esposas, filhos e restantes familiares. Não esperamos de todo que volte a ser o que era dantes, porque águas de bacalhau vêm e vão com o vento, e se não nos caem uns dentes como represália, vão-se os anéis, sem que para isso seja preciso preencher uma infinidade de papéis.”Acho que é o bastante por hoje, não falemos mais em desventuras que, mesmo as omitindo elas não pedem licença para se instalar e ficar à lá garder, vamos esperar, todos em seus lugares de eleição, costas bem unidas ao espaldar da cadeira, tacões dos sapatos de verniz bem juntos, e acima de tudo, bem comportados. Comecemos por ensaiar uma sentida e profunda, (até ao coração de preferência) oração, estudantes de todas as partes, apliquem-se num valoroso esgar, e penitencial genuflexão. Vem aí a marcha dos veteranos, os meninos, de bata branca, não têm autorização de encarar os senhores, mantenham-se de cabeça baixa e, sobretudo, nada de contacto visual.

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