Urubu Cultural

Urubu Cultural

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um conto de natal


 Certo domingo, quando tinha dezanove anos, e por volta das quatro horas da tarde, decidi ir tomar uma imperial à cervejaria Esperança. Aprumei-me: vestindo fato e gravata, escolhendo o melhor perfume e saí de casa. A atmosfera fulva convidava ao passeio, o sol brilhava triunfalmente, os passarinhos chilreavam e eu não tinha nada a perder. Chegado à porta da cervejaria, e lançando um olhar perscrutante, reparei que só estavam os habitués do costume: quatro velhos, que todas as tardes jogavam a sueca na mesa do fundo, tal ausência de mais freguesia, devia-se obviamente à hora que era, pois a cervejaria era substancialmente mais frequentada à hora de jantar; ainda assim decidi ficar, tomar pelo menos uma imperial. Foi justamente quando me ia aproximando do balcão, por detrás do qual o empregado enxugava os copos religiosamente, que reparei que encostado ao mesmo, se encontrava o Pai Natal, rodopiando com os dedos um copo meio vazio de imperial, que fitava sem despegar.
 Sentando-me no banco próximo do seu, fui eu quem encetou o diálogo:
- Então “sô” Nicolau, como vai isso, passou bem?
O Pai Natal ainda levou um momento, até reparar que falava com ele, talvez por se encontrar já algo alcoolizado, como se percebia pela sua exalação, e só depois me reconheceu:
- Oh Magalhães!, como vai você, meu caro. Está tudo bem?
- Menos-mal, menos-mal – respondi eu, esboçando uma expressão cordial e amistosa – Quando entrei, reparei que o senhor aqui estava, e decidi vir conversar um pouco, espero não estar a incomodar?
- Por quem é! Não incomoda de forma alguma, é pois para mim um prazer a sua companhia... Já pediu o que quer beber?
- Ainda não – e dirigindo-me ao empregado, pedi que me servisse uma imperial, e que tirasse outra para o Pai Natal.
Assim que tomei o primeiro gole, e enquanto descascava uma alcagoita, perguntei ao Pai Natal:
- Então “sô” Nicolau, como corre a vida?
Antes de me responder, o Pai Natal bebeu a restante imperial, que ainda tinha no copo, e só depois de começar a que eu lhe tinha pago, disse:
- Muito mal, muito mal… De facto, não corria assim tão mal desde a malograda época, em que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia....
 Consciente do que esses conturbados tempos, tinham representado para o Pai Natal, encontrei nessa revelação motivos para me preocupar:
- Então diga-me cá, o que sucedeu assim de tão grave? - questionei eu, de semblante carregado, e partindo mais uma alcagoita.
- Olhe, meu caro Magalhães, uma série de coisas, uma série de coisas… se quer que lhe diga, nem sei onde isto principia e onde finda. Mas de uma coisa estou certo, esta foi uma das causadoras... – e mostrou-me uma muleta, que eu ao me sentar perto dele, não tinha reparado, pois estava do lado oposto ao meu:
- Não me diga que teve um acidente?
- Digo-lhe, digo-lhe! Vou ter de andar de muleta para o resto desta miserável vida, veja você!
- Quer dizer então, que foi coisa grave? - interroguei, bastante preocupado:
- Se foi! Nem queira saber, tudo aconteceu no ano passado, quando fazia a distribuição dos presentes: quando descia por certa chaminé, e chegado à lareira, fique sabendo que tropecei num toro de lenha que ali estava, e fui cair precisamente em cima do guarda-fogo, que por acaso, rematava em cima, com uns bicos em ferro, como se costuma ver nos gradeamentos dos jardins, espetaram-se esses bicos logo acima do meu joelho, obrigando-me à amputação de metade da perna. Extasiado com tal relato, mandei vir mais duas imperiais, e um pires de alcagoitas, sinceramente interessado no relato do Pai Natal, tornei:
- Então e como conseguiu o senhor, ir para o hospital? Conseguia ainda andar?
- De forma alguma, o que me valeu, foi que os donos da casa ouviram o estardalhaço e acorreram, a saber o que era, quando repararam que era eu e que estava ferido, prestaram-me os primeiros-socorros e transportaram-me imediatamente para o hospital da Divina Misericórdia.
- Foi lá que lhe amputaram a perna?
- Foi, e onde também me puseram esta prótese – levantando o Pai Natal uma das pernas das calças, para que eu pudesse ver.
- Imagino que ao princípio, tenha sido bastante difícil, caminhar com a prótese...
- E tem razão, foi bastante, mas por estranho que pareça, não foi isso o mais difícil, o mais difícil ainda está para vir, que será pagar a maldita prótese, puseram-me uma prótese de titânio, das mais modernas do mercado, com certeza viram que era o Pai Natal, e o Pai Natal não podia andar só com uma perna de pau, tinham que por esta merda em titânio!
- Então mas porque me diz que será difícil pagar, o senhor não estava segurado?
- Estar até estava, mas os facínoras da seguradora, consideraram a prótese de titânio um luxo, e não me quiseram pagar.
- Estou escandalizado com o que me conta! Não posso crer!
- E não é tudo...
- Quer dizer, que ainda há mais?
- Sim senhor, era para receber também dinheiro do olho que tenho vazado, e por causa dessa encrenca com a seguradora, não o recebi. Pasmado por completo, bebi mais um gole de imperial, da qual até me tinha esquecido, fascinado com tal relato de horror, e questionei o Pai Natal acerca do olho:
- Olhe… o que quer que lhe diga, foi também um acidente de trabalho: bastou uma cornada de uma rena, para me fazer isto, num momento de distracção...
- Ás vezes, só isso basta....
O Pai Natal pediu mais duas imperiais ao empregado, que com atenção e enlevo, também escutava a macabra história. Saboreando um gole, pousou o copo, e apontou-me o olho esquerdo, o olho de vidro:
- O olho de vidro, que também tive que comprar às minhas expensas, que os bandidos nem um centavo me deram!
Terminei a imperial que bebia, e comecei a que o Pai Natal me oferecera, tentei me lembrar de algo que o pudesse animar, visto que tanto azar junto era obra, achei que lhe devia perguntar pela mulher:
- Calculo que o apoio da dona Nicole, nessas alturas, em que teve os acidentes, tenha sido bastante importante para si?
Malquista hora em que lhe fui falar da mulher, pois o Pai Natal, roxo de raiva, socou vigorosamente o balcão e bradou:
- Nem me fale nessa fulana, que me dá umas iras, que quase atinjo a síncope!!!
 Receando isso mesmo, tentei acalmá-lo, porém sem sucesso, pois cada vez barafustava mais, esbracejante:
- Você sabe, caro Magalhães, que essa fulana me pôs um processo em tribunal, por alegada violência doméstica. Isto só a mim! Eu, que nunca lhe toquei num fio de cabelo, nunca comi na sala, não deixava nada espalhado pela casa, descarregava sempre o autoclismo, quando dava um jogo de futebol na televisão, não podia ver, que a madame não podia perder o episódio da telenovela, andava a mando de vossa senhoria, para no fim de contas me fazer uma patifaria destas, veja você!
- Não quero crer!?
- Pois creia, que é a verdade.
- Então mas e qual foi a causa de tal processo?
- Sabe qual foi? Foi o ver-me na miséria e querer me abandonar, e com isso ainda ganhar alguns tostões, mas nesse aspecto teve azar, porque eu não tenho um chavo.
- Mas que golpe baixo, que harpia é a sua mulher...
- Diz bem, eu próprio não encontraria melhor termo, que harpia… olhe, por acaso o julgamento é daqui a dois dias.
- Se precisar de uma testemunha abonatória, não hesite em me contactar, que vou imediatamente ao tribunal interceder em seu favor.
- Terei em conta a sua oferta, muito agradecido lhe fico. - rematando com um vigoroso trago de imperial.
 Por minha vez, também acabei de tomar a minha, e mandou imediatamente o Pai Natal o empregado tirar mais duas, o que este fez imediatamente e com muito aprumo, na intenção de que ali nos mantivéssemos, e se soubesse o epílogo de tal tragédia natalícia:
- Olhe, amigo Magalhães, muito tenho eu passado e sofrido nestes últimos tempos, e se pensa que já sabe de todas as minhas desgraças, eu digo-lhe que não, pois também perdi a minha oficina.
- Ai sim? Então como sucedeu isso?
- Mais uma vez graças à penúria em que me encontro, pois como deve imaginar, impossibilitado que estou de trabalhar, como é obvio, não tenho fonte de rendimentos, logo não pude manter os ordenados dos meus funcionários em dia, os malditos, sem a mínima consideração por mim, transformaram a oficina numa cooperativa.
- Realmente! É como se costuma dizer, que um mal nunca vem só!
- Tem toda a razão, esse ditado aplica-se na perfeição, à situação em que me encontro.
 Perguntando as horas ao empregado, o Pai Natal decidiu que já era altura de parar de beber, trocamos um amistoso shake-hands, e ele passou à difícil tarefa, que era sair do banco, endireitar-se e caminhar com a muleta. Para despedida ainda lhe disse:
- “Sô” Nicolau, sabe que tem aqui um amigo para o que der e vier, e recorde-se que não há mal que nunca acabe e bem que sempre dure, o senhor lembra-se aquando lá da confusão com os bolcheviques? Nessa altura o senhor também passou por tempos conturbados, bastou esperar uns anos, até que surgiu o contracto com aquela famosa marca de refrigerantes à base de noz de cola, e tudo melhorou na sua vida, vai ver que está só a atravessar mais um momento negativo, e que tudo se recomporá.
- Muito obrigado Magalhães, obrigado pelo ânimo que me está a dar, fico lhe muito agradecido, e digo-lhe mais, é nestas alturas que se conhecem os verdadeiros amigos!
- Ora, ora…
- Agora tenho de ir, e não se esqueça, daqui a dois dias, no tribunal.
- Com certeza, lá estarei. E já agora, onde é que o posso encontrar?
- Eu estou ali no albergue da Trindade.
- Com certeza, procurar-lhe-ei lá.
 O Pai Natal partiu, e eu fiquei a acabar a minha imperial, devia de estar muito enganado, se pensava que eu ia realmente ao albergue, antro de tuberculosos e piolhos, quanto aos processos que tem em cima, que o esfolem, que a mim nem me aquece nem me arrefece, se queria a minha ajuda, tivesse pensado nisso antes, quando no natal me levava somente peúgas, truces e blusas de malha.

Sem comentários:

Enviar um comentário