Urubu Cultural

Urubu Cultural

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Bleuzorras, o amola-tesoiras


 Há inúmeros séculos atrás, num longínquo e distante passado: eram as ruas de Carcamude palmilhadas por exímio e destro amola-tesoiras, artista de eleição, como a vila nunca tinha visto até então, desde os primórdios da sua existência. Quando levante fazia e a sua gaita se ouvia, as facas amoladas com mestria, se sabia que seriam; toda a gente se assomava à janela e, para rua onde o amola-tesoiras passasse, acorria.
 Era o nome do mancebo amolador: Bleuzorras, nome que até rima com tesouras, e que lhe tinha sido dado por seu avô Alfredo, ferreiro de mester e de quem certamente herdou a habilidade, de moldar o metal. Era também esta a sua única valia, neste por vezes injusto mundo, que seu pai nunca soube quem foi, e sua mãe ao o parir, assim falecera.
 Percorria, como já aqui se disse, Bleuzorras, por uma manhã de levante, as ruas de sua vila, quando viu chegar um mensageiro a cavalo, à praça do pelourinho, estacando no meio da mesma, desceu do cavalo e desenrolando um pergaminho, com solenidade, recitou à multidão que se ia ajuntando:
 - Venho assim informar, por meio de manifesto real, que a filha de sua Majestade El-Rei Dom Caricato, a princesa Patrícia, se encontra enfeitiçada. Vítima de infame bruxedo, encontra-se pois envolta em apertadíssima fita de cetim, que a impede de ter acção seja para o que for. Desta forma requer o reino, à vila de Carcamude, no caso de o ou os deter, o ou os respectivos heróis, que puder enviar em demanda da solução para a questão da princesa. Tenho dito. Com estas duas últimas palavras enrolou, o mensageiro o pergaminho, montou-se na cavalgadura e abalou desarvorado, em busca da próxima vila.
 Durante todo o tempo que durou a leitura do manifesto, esteve Bleuzorras na turba a escutar, bastante impressionado com o sucedido à princesa, levou a matutar no assunto durante o resto do dia. Quando principiou o anoitecer, e chegou a hora de tornar a casa para as sopas, enquanto jantava com seu avô, relatou-lhe tudo o que sucedera, bem como, da sua vontade de partir em auxílio da princesa. Com esta decisão, ficou com muita pena seu avô Alfredo, que conhecendo o génio do neto como conhecia, tinha por impossível desmobilizá-lo da sua ideia de abalar.
 No dia que se seguiu, antes do romper da alvorada, embrulhou numa grossa serapilheira Bleuzorras, todos os seus aprovisionamentos, e partiu a caminho do palácio real, demandando honra e glória. Tomou-lhe a jornada um dia e uma noite, sendo que na manhã seguinte, já cruzava os enormes portões da morada real. Deparou-se, depois de lá chegado, o mancebo com enorme arraial, todas as vilas e aldeias do reino tinham enviado, cada uma, o seu mais façanhudo e jactante herói: ferozes guerreiros de dois metros de altura, por um de largo, que exercitavam vigorosamente a musculatura, enquanto aguardavam por posteriores direcções do soberano.
 Passava do meio-dia quando EI-Rei Dom Caricato surgiu, na varanda real. Todos os heróis se alinharam, a fim de o escutar; o monarca começou por recitar o que já se sabia, ou seja, o conteúdo do manifesto que mandara ler por todas as praças do reino e, seguidamente, apelando por redobrada atenção dos heróis, deu pormenores vagos, de onde se encontrava a princesa: numa gruta, situada na mais alta montanha do reino, guardada por feroz quimera tomadora de vidas. Terminada a palestra, toda a gente reuniu as trouxas e o arsenal, abandonando o palácio com a bênção do rei.
 Ainda o grupo não tinha palmilhado uma légua, quando um feroz guerreiro reparou, que o cortejo bélico era seguido desde a morada real, por esquelético e franzino moço, ao que julgava ser um humilde escudeiro, interrogou assim António Valadares, herói de Outeiros do Inferno:
- Que é que vens fazendo atrás da gente, moço?
- Vou salvar a princesa – retorquiu Bleuzorras.
Comentário que despoletou imediatamente o riso, a bandeiras despregadas, entre o pelotão, que zombando e escarnecendo de tal forma de Bleuzorras, fez com que este, bastante magoado, tomasse diferente rumo para a montanha, onde encarcerada se encontrava a princesa.
 Cabisbaixo, vogando agora só, pela espessa poeira dos caminhos de terra batida, viu-se Bleuzorras, depois de andar quatro longas horas, debaixo de tartárea canícula, chegado ao sopé da montanha, onde a feroz quimera residia; sabia-o porque tentando desvendar o pico da montanha, a espessa neblina plúmbea não o permitia. Estoirado de tanto andar, decidiu procurar uma sombra onde, debaixo da qual, pudesse repousar por uns instantes. Afastando-se do caminho, embrenhou-se Bleuzorras, alguns metros mato adentro. Descoberto finalmente enorme pedregulho musgoso, a que se encostou, procurou o nosso herói, seu já murcho odre, quando discerniu, por entre o rumor silvestre: o do correr de água, erguendo-se mais uma vez, seguiu-o, abrindo dificultosamente caminho, por entre frondosos medronheiros e agudas estevas. Deparou-se afinal, com profundo e fresco pego de água cristalina, rodeado de luxuriantes fetos e avencas farfalhudas, onde se podia vislumbrar limpidamente: inúmeros bordalos e pequenas rãs verdes, calmamente bulindo no fundo.
 Aproximando-se mais um pouco, surpreendeu Bleuzorras dois escalavardos que, passivamente se refrescavam a beira do dito pego, para seu grande espanto, nenhuma das duas criaturas fugiu, ou sequer se mostrou assustada, permanecendo ambas, ao invés, estáticas, fitando-o. Sem qualquer acção por parte dos três, os escalavardos começaram por cantar os seguintes versos:
- Bleuzorras, Bleuzorras,
- Onde fores, não corras.
- Bleuzorras, Bleuzorras,
- Onde fores, não corras.
- Tem a quimera um leve sono,
- Que não está em teu abono,
- Toma tu as nossas peles macias,
- E cobre teus sapatos, vê se te avias!
 Tendo isto dito, mergulharam automaticamente os dois animais em profunda letargia, permitindo a Bleuzorras aproximar-se e, graças a uma grande navalha por que se fazia sempre acompanhar, esfolá-los e seguir viagem montanha acima.
 A meio da sua escalada decidiu, o nosso protagonista cobrir os sapatos, com as peles que antes obtivera: envolvendo-os muito bem, amarrou por fim as peles na zona dos artelhos, com pedaços de corda de juta, da que os heróis sempre se fazem acompanhar. Continuando a escalada, atingiu finalmente Bleuzorras a caverna da besta, onde esta dormia profundamente, em seu redor jaziam pedaços dos heróis que, anteriormente tinham zombado de Bleuzorras. Pé ante pé contornou, o moço a fera, e pôde vislumbrar, no centro duma gruta de quartzo, a princesa Patrícia: suspensa no ar, envolta de facto, em apertadíssima fita de cetim cor-de-rosa. Automaticamente posou Bleuzorras a sua trouxa, retirando do seu interior a pedra de esmeril e anavalha, fez o que de melhor sabia, amolando a mesma até à perfeição. Ensaiando a lâmina na unha do dedo polegar, deu por concluída a tarefa e preparou-se para resgatar a princesa. Cortada a fita, acto contínuo, a mesma caiu-lhe nos braços. Ainda dormente, Bleuzorras amarrou-a às suas costas, certificando-se que a princesa estava segura, e não sem antes furar os olhos da quimera com a navalha, deu início à jornada de regresso.
 Assim que transpôs os portões da morada real, foi o amolador recebido com enorme aparato, a princesa foi tomada pelas suas aias e conduzida aos seus aposentos, a fim de descansar da sua aventura extrema. Por sua vez, foi Bleuzorras presente ao monarca, que felicíssimo, ladeado por seus dois filhos varões, Dom Cláudio e Dom Délio, que há muito tinham sido encantados por bruxa maquiavélica, transformando-os esta em dois escalavardos, que acabaram por ser mortos por Bleuzorras, quebrando assim o terrível feitiço. Fez-se saber que o novel herói casaria, com a princesa, e governaria com ela um reino distante.
 Provou assim a toda a gente Bleuzorras, que a inteligência e a humildade, podem ter uma recompensa melhor, que a jactância e a imodéstia.

Sem comentários:

Enviar um comentário