Urubu Cultural

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O conto do João Cegonha


 Era uma vez um casal que vivia no campo, isolados de tudo e de todos, estavam ambos: marido e mulher, na casa dos trinta anos; e Custódia, que assim se chamava a mulher de João Cegonha, que assim se chamava o marido de Custodia, não havia meio de emprenhar. Certo dia, João Cegonha tomou uma decisão, que se acabou por revelar a mais frutífera e acertada: foi esta, a de ir com Custódia, em busca do parecer do virtuoso mais próximo, do lugar onde viviam, a respeito da doença ou moléstia de sua mulher. Aparelhado o carro-de-mula, acabaram por partir, porém, sem não se proverem antes de abundante farnel e um garrafão de vinho tinto, suficiente para os dois dias de jornada, e duas galinhas, para pagar ao virtuoso a consulta sobre a maleita de Custódia.
 Passados os dois dias de viagem sem percalços de maior, o casal chegou a casa do tão ambicionado virtuoso, (que por acaso estava a meio das consultas da manhã) desceram os dois do carro, e João Cegonha soltou a mula, que por ali ficou, pascendo a fresca erva primaveril; o casal aproveitou a espera para, também eles, matarem a fome: um copo de vinho cada um e o respectivo entalado de chouriça comeram.
 Quando chegou, por fim, a vez de Custódia ser observada pelo virtuoso, dormitava João Cegonha encostado à roda do carro, remoendo uma palhinha, enquanto ela conversava com a dona da casa, que por baixo do alpendre, estava escolhendo o grão do restolho; aproveitou também esta, durante o diálogo, para aconselhar a Custódia urnas mezinhas muito boas, que ela conhecia para o mal, de que talvez ela padecesse, embora frisando sempre o facto, de que o marido é que sabia o que ela haveria de fazer.
 Lá acabaram por entrar os dois para dentro de casa, João Cegonha agarrando as duas galinhas pelas asas e Custódia, que se foi sentar frente ao virtuoso. Estando este à mesa da casa de fora, que era mesmo ali que ministrava as consultas aos seus pacientes; perguntou ao que vinham, explicou tudo Custódia, e enquanto que o virtuoso ouvia, analisava também os factos, tentando encontrar a explicação para o problema e, se cura tivesse, pois também a mesma! Depois de muito remoer a massa cinzenta, chegou o virtuoso à conclusão de que o que Custódia tinha, era nem mais nem menos, que a madre seca, ao ouvir isto, soltou de imediato João Cegonha um suspiro, lamentando as duas galinhas que tinha trazido, para ouvir uma notícia tão má; ainda assim, o virtuoso disse que havia solução, nem sempre resultava, mas que conhecia uma possível cura. Pois explicou ao casal o que Custódia havia de fazer, que era senão quando tivesse oportunidade, ir à capela ou ermida mais próxima de onde moravam, lavar o ventre com água-benta e que à noite, a seguir à troca de humores entre o casal, se mantivesse imóvel Custódia durante meia-morta, rezando uma certa oração que ele lhe iria ensinar. Acabada por fim a consulta, e ensinada a oração, depositou João Cegonha as galinhas à porta do virtuoso, para a mulher deste as matar e depenar. Agradeceram ambos a consulta e a suposta cura, indo-se preparar para o longo regresso a casa. Já no exterior, e dando algumas mostras de contentamento, João Cegonha foi buscar a mula e tornou a aparelhar o carro, subindo ambos para os seus lugares, lá abalaram direitos ao seu monte, com a esperança de que a receita dada pelo virtuoso resultasse.
 Passados mais dois dias de caminho na volta, chegou o casal a casa. Já muito tarde para ir praticar o que o virtuoso aconselhara, jantaram e foram descansar da viagem, para que no dia seguinte estivessem refeitos, e prontos para encetar a cura de Custódia. E assim foi, no dia seguinte, depois de comerem o mata-bicho, partiram de novo no carro de mula rumo à ermida, que ficava mais próxima de casa, distando esta, mais ou menos, dois quilómetros. Em redor da capela, quando desta já se afiguravam alguns remates, não se via vivalma, só mais perto discerniram com clareza, a figura do presbítero, que por ali andava a regar umas ervas aromáticas; e certo de que o sacerdote não permitiria que Custódia esfregasse o ventre com a água-benta, por considerar o clero, os conselhos dos virtuosos, meras práticas pagãs, pôs-se então João Cegonha a matutar num esquema para ludibriar o sacerdote... Chegando por fim, depois de pensar uns minutos, à conclusão que simularia uma venda de vinho, empataria o ancião, enquanto Custódia, com a desculpa de que já que ali estava na ermida, iria orar, entrava, e rapidamente friccionava o ventre com a tão ansiada e necessária água-benta. Com efeito, tudo assim decorreu como atrás descrito, lá ficou João Cegonha empatando o ancião, enquanto que Custódia, de terço na mão, foi entrando na ermida. Assim que se viu no interior desta, procurou avidamente a pia da água-benta, contudo reparando que, ao se abeirar daquela, a mesma estava completamente vazia; desesperada, mas porém não derrotada, deu asas ao engenho, e seguindo o raciocínio de que todos os líquidos que estivessem em solo sagrado, seriam bentos e provocariam os mesmos efeitos que a água, correu lesta Custódia para a sacristia, com o intuito de esfregar o ventre com o vinho da missa; e em boa hora o fez, pois o havia com certeza com maior abundância, que água. Encontrada a pequena pipa onde o presbítero mantinha o vinho, despejou a mulher um pouco para dentro de uma púcara de barro, e esfregando muito bem e depressa o ventre, saiu rapidamente da sacristia, com receio de que caso fosse descoberta, levasse alguma reprimenda do padre; que durante todo o ritual de Custódia, se manteve em alegre cavaqueira com João Cegonha no exterior, sem desconfiar absolutamente de nada do que se passava no interior do seu templo. Saiu enfim, calma e tranquila, refeita da azáfama em que andara, em busca de líquido bento, Custódia da ermida, e assim que reparou nela o marido, foi buscar a mula e, aparelhando-a, despediu-se o casal do sacerdote, subindo para o carro e abalando. Quis logo saber João Cegonha como tinha decorrido todo o processo, e contou-lho pormenorizadamente a esposa, e que também em vez de água-benta, se tinha esfregado com vinho bento, pois não encontrara sequer vestígios da primeira, em toda a ermida; não viu nesta acção João Cegonha mal nenhum, pois não tinha conhecimento de que alguma vez no mundo, uma coisa que fosse benta, tivesse feito mal a alguém.
 Acabou o dia, e chegou a noite, deitou-se o casal, e já com o ventre de Custódia benzido, seguiram as restantes indicações do virtuoso para curar o mal da padecente, trocaram ambos os seus humores, e voltando-se no fim João Cegonha para o seu lado, para dormir, ficou imóvel e a rezar Custódia, a dizer as orações recomendadas pelo virtuoso. Amanheceu novo dia, e voltou o casal ao rotineiro quotidiano de trabalho na horta; e como este se seguiram muitos, praticando todas as noites o casal, o mesmo ritual, até que se perfez um total de trinta dias, e foi senão quando, Custódia começou a desconfiar, finalmente, que estaria prenhe e o comunicou a João Cegonha. Proibiu-a desde logo o marido, de fazer qualquer trabalho pesado, limitando-se assim Custódia simplesmente ao governo da casa, a tratar da criação e pouco mais.
 Estavam as suspeitas da mulher em relação à sua prenhez acertadas, pois com o decorrer dos meses, seu ventre foi incessantemente aumentando de tamanho, como também a alegria de João Cegonha, até perfazer, mais dia, menos dia, um total de nove meses. Quando por fim chegou o dia do parto, foi muito apressadamente João Cegonha, em busca da parteira da aldeia mais próxima, e logo que foi encontrada a mesma, retornaram imediatamente ao monte do João Cegonha, onde a parturiente estava estendida na cama, esperando por auxílio. Mandou a parteira que João Cegonha fosse imediatamente aquecer água, o que este fez, com os joelhos a tremer, desde logo. Entregue a água quente à parteira, esperou João Cegonha por novos desenvolvimentos, às voltas pela casa de fora, ouvindo ora os gritos da mulher, ora as palavras de encorajamento da parteira. Só sossegou realmente, quando escutou um enorme vagido, que lhe pareceu ser dum bebé, alegrou-se bastante João Cegonha, nascendo-lhe um enorme sorriso no rosto, e a óbvia vontade de ver a sua tão desejada descendência. Aproximou-se da porta do quarto perguntando se podia entrar, o que a parteira consentiu, desde que muito devagar, quer para não acordar a mãe, que descansava do esforço, quer para não fazer o recém-nascido chorar. Penetrando pé ante pé, João Cegonha no quarto, perguntou imediatamente à parteira, se era menino ou menina, ao que esta, destapando a cabecinha da bebé, respondeu que era uma linda menina, e foi senão quando, totalmente mortificado de incompreensão e estupor, que João Cegonha reparou que a bebé tinha uma cabeça de porco! Aproximando-se mais, e destapando o resto do corpo, constatou que não era urna criança com cabeça de porco, mas um porco de facto, e que o mais estranho de tudo, era que a parteira não demonstrava o mais leve sinal de espanto ou dúvida!, tratando a pequena bácora, como se fosse realmente uma criança; deduziu João Cegonha que poderia ser tudo uma alucinação, causada pelos nervos que sentira durante o tempo do parto, e decidiu sair de casa, para apanhar ar fresco, e lavar o rosto com água fria, podendo assim ser que a porca, que sua mulher parira, desaparecesse e se transformasse na criança que deveria ser. Saiu no mesmo instante do quarto, dirigindo-se para o exterior, onde o manto nocturno já encetava a sua tarefa de tudo cobrir, respirou fundo João Cegonha uma grande golfada de ar e encheu a bacia de água, com a qual lavou o rosto suado. Substancialmente mais calmo, e certo de que tudo não passava de um equívoco, João Cegonha voltou a entrar em casa, e ainda que com algum receio de encontrar um porco, ou melhor, porca, nos braços de sua mulher, penetrou no quarto de ambos, e foi então que totalmente derrotado de espanto, voltou a encontrar uma vez mais a porca, mas desta feita já passara dos braços da parteira, para os de Custódia, que agora a embalava maternalmente, como se de um recém-nascido humano, realmente se tratasse:
- Não vês que isso e um porco, Custódia! - exclamou João Cegonha.
- Vejo João, mas é a nossa filha, saiu do meu ventre! - retorquiu a mulher.
Sentindo-se impotente perante tal reacção, João Cegonha limitou-se a pagar à parteira, e ir arranjar qualquer coisa de comer.

 Desde o nascimento de Brites, assim se baptizou a filha de João Cegonha, a vida do casal não conheceu nenhuma outra tão grande revolução, e até já tinham descoberto o motivo, pelo qual tinha Brites nascido com forma de porca: pois esfregou Custodia o ventre com vinho e não com água, como tinha ordenado o virtuoso, nascendo assim um suíno, em lugar de um humano. Contudo, João Cegonha, foi aos poucos, com o passar dos anos, aceitando uma filha tão estranha, e até mesmo aprendendo a gostar dela, chegando a ter por ela a afeição, que se tem por um filho humano.
 Continuou a vida da família calma e sem sobressaltos, ate ao dia em que Brites completou dezasseis anos, a mãe costurou-lhe um vestido de chita purpúrea, que estreou no dia de anos e, o pai, ofereceu-lhe uns brincos e uma pulseira de oiro, ficando muito feliz com as ofertas a bácora; porém, e como a vida no campo é dura, mesmo no dia de aniversário da filha, teve que partir João Cegonha para a horta, deixando mãe e filha em casa, desconhecendo que a Sorte, arquitectava mais uma peripécia, na sua já atribulada vida...
 Aconteceu que, à volta para o almoço, encontrou João Cegonha, Custódia sentada à porta de casa, chorando e em grande estado de nervos, interrogou-lhe imediatamente sobre o que tinha acontecido, respondendo sua mulher que Brites, tinha sido levada por um homem a cavalo, com aspecto de ser um mensageiro real, ficou atónito João Cegonha e disse a sua mulher que lhe preparasse imediatamente um farnel, que ele iria à procura da filha de ambos. Dirigindo-se à manjedoura, albardou a mula, montou-se, e passando pela porta de casa, guardou o farnel e partiu.

 Andou João Cegonha dias e noites intermináveis, na senda da sua desaparecida filha, sem qualquer tipo de orientação ou pista, que o levasse em rumo correcto, até ao dia, em que passando por determinado lugarejo, se deparou com um homem que continuamente entrava e saia de dentro de casa, com um grande balde vazio. Apeando-se da mula, dirigiu-se ao mesmo, com o intuito de obter algumas informações, mas antes de mais nada, e vendo-o em tão grande azáfama, saudou-o e perguntou-lhe o que fazia, retorquiu-lhe o homem que não via nada em casa, e que tentava levar luz dentro do balde para o seu interior, mas que quando lá chegava, esta se desvanecia na treva. Sorriu João Cegonha, e subiu ao telhado da casa do homem, onde abriu, por entre o colmo, uma clarabóia, que assim deixou passar a claridade para o interior da casa. Ficando-lhe muito grato o sujeito, deu como paga a João Cegonha um balde de pez, que tinha sobrado da instalação do telhado, e antes ainda de partir, perguntou-lhe se tinha por ali passado um cavaleiro, com um porco a cavalo, ao que o homem respondeu afirmativamente, tinha passado, sensivelmente, havia dois ou três dias, seguindo pela estrada real, agradeceu João Cegonha pela informação e partiu novamente na senda de sua filha. Ao cabo de umas horas, e já anoitecendo, encontrou João Cegonha uma rapariguinha que chorava, perto de um poço, comovendo-se com tal situação, apeou-se mais uma vez, e aproximou-se da jovem, com o intuito de a consolar, rogou-lhe que não chorasse mais, questionando-lhe acerca da causa de tal tristeza, ao que respondeu a rapariga, que tentava tirar água do poço, porém sempre sem sucesso, achou tudo isto muito estranho João Cegonha, até reparar que a rapariga tentava tirar a água, com um cesto, escorrendo inevitavelmente todo o líquido, durante a subida até à superfície. Reflectindo por uns momentos, encontrou João Cegonha a solução: vedar o cesto com o pez que trazia, e assim conseguiria tirar a água do poço, com efeito, derreteu uma porção de pez, vedou o cesto completamente e, com este já seco, jogou-o ao poço, puxando-o para cima, conseguiu obter a tão almejada, pela jovem, água. Era a rapariga que João Cegonha ajudara, a filha do ferreiro de uma aldeia das redondezas, convidando-a esta, logo de imediato, para que pernoitasse em sua casa, e João Cegonha reparando que a noite estava próxima, aceitou sem hesitar o convite; subiram ambos, com o cesto cheio de água para as ancas da mula, e lá abalaram.
 Conversou, comeu, bebeu e dormiu João Cegonha em casa do ferreiro, até que no dia seguinte, e ainda antes de partir, como paga por ter auxiliado sua filha, presenteou-lhe este com uma marreta de aço; muito agradecido ficou João Cegonha e, com uma merenda que a pequena lhe preparara, fez-se à estrada. Seguiu, como vinha fazendo desde que se cruzara com o homem, que tentava levar luz para dentro de casa com um balde, pela estrada real, trotando calmamente, até que sensivelmente a meio da manhã, parou para merendar, procurou uma moita frondosa, onde se abrigar do sol, sentou-se e comeu, ficando ainda por ali uns minutos, a descansar, até se fazer de novo à estrada. Quando tornou a partir, partiu decidido a só parar quando chegasse ao castelo do rei; e assim foi, só se apeou da mula, quando estava já na imediação do castelo, e encontrou um indivíduo, provavelmente na casa dos trinta, a tentar derrubar uma parede de taipa com ovos, achou castiça esta situação João Cegonha, e já que trazia consigo uma marreta novinha em folha, predispôs-se a ajudar o tipo. Desceu da mula, desamarrou a marreta da albarda, e encaminhou-se para o fulano, lá chegado, sugeriu-lhe que utilizasse a marreta, na execução da sua árdua tarefa, o que a homem fez de bom grado. À terceira marretada, a parede cessou, e João Cegonha aproveitou para lhe perguntar se, por acaso, não reparara se por ali, passara um homem a cavalo, com uma porca .... O trabalhador pensou durante um momento, até que por fim, se lembrou de ter visto um indivíduo, com uma porca, a entrar nas cozinhas do castelo. João Cegonha pensou imediatamente o pior, pelo que se lançou de imediato em corrida, na direcção das cozinhas e, assim que transpôs a porta das mesmas, deparou-se imediatamente com o vestido novo de sua filha, prostrado em cima de uma mesa. Como um louco furioso, encetou uma frenética busca por todos os fornos, só sossegando, completamente estarrecido de terror e pânico, quando encontrou o cadáver de sua filha, ainda com a pulseira e com os brincos, que tinha recebido no dia de anos, totalmente tostado. João Cegonha não conseguiu encetar mais nenhuma acção, que não a de se prostrar no chão e chorar, lamentando sua filha com corpo de porca, a sua pobre Brites, de quem ele aprendera a gostar e a amar, como uma criança, uma verdadeira criança, que se mima, que se pega ao colo, que se consola durante um chora, uma filha tão desejada, talvez a mais desejada... agora, morta, assada....
 João Cegonha, reunindo o último resquício de força que lhe restava, levantou-se e procurou umas serapilheiras, enrolou o corpo de sua filha e saiu da cozinha, procurou sua mula com o olhar, e encaminhou-se para ela, colocou a cadáver de Brites em cima da mesma, subiu também ele para cima dela, e fez-se à estrada, ia voltar para casa e enterrar condignamente sua filha.

Nota: este conto, faz parte da tradição oral Portuguesa, foi-me transmitido aos treze anos, mais coisa menos coisa, por uma idosa minha vizinha, limitando-me eu, apenas a conferir-lhe alguns ornatos.

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