Urubu Cultural

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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A lusitana troika otarídea


 Na branca aridez da tundra siberiana, um pequeno bosque de pálidos abetos, vergados pela fenomenal fúria do vento glacial, tenta resistir; como um grupo de indefesos mujiques, à investida de uma horda tártara. No seu interior, um jovem boiardo, a quem o grosso cafetão, e as toscas botas de casca-de-tília, também não resguardam das trespassantes lâminas gélidas da geada, tenta a muito custo acender um vetusto e ornamentado samovar de prata, com o fim de preparar um chá que, pelo menos, lhe aqueça o espírito, igualmente gelado como o corpo, mas por razão diversa, que mais adiante no conto se dirá qual.
 Pois estava o mancebo, a modos que acocorado diante do samovar, quando lhe pareceu ouvir, atrás de si, uma muito leve e estridente risadinha. Voltando-se súbito, nada viu, atribuindo a causa dessa sensação à fome que lhe atormentava o estômago, ou a alguma arremetida mais vigorosa da silvante ventania, acossando a fina caruma dos abetos. Tornando à sua primitiva posição, reparou, não sem espanto e surpresa, que à sua frente pairava o almofariz da baba Yaga. Esta, por sua vez, fitava-o, de sorriso desdentado, segurando seu pilão numa mão, e na outra a vassoura de bétula. Estupefacto com tão singular aparição, que o rapaz conhecia das ameaças que sua ama lhe fazia na infância, e tendo sido, com o decorrer dos anos, relegado para o plano da fantasia, deixando de acreditar, gradualmente, que em caso de fazer alguma travessura, pudesse mesmo vir a ser raptado, pela velha que tinha agora à sua frente.
Sem mais delongas, a idosa encetou diálogo:
- Então, filhinho, que fazes tu aqui perdido, no meio desta borrasca?
Hesitante, o rapaz a muito custo, titubeou a sua resposta:
- Fujo dos assassinos de minha família…
- Ai sim? – retorquiu a velhota, nunca deixando de sorrir, ao mesmo tempo conferindo a seu tom de voz, um não sei quê de sarcástico.
- Pertenço a uma família de boiardos moscovitas, descendente de portugueses, perseguida agora pelo czar Ivan, o terrível.
- E como te chamas tu, netinho?
- Foma Victorovitch dos Santos.
- Bem vejo…
 Durante o tempo em que decorreu a conversa entre os dois, a baba Yaga nunca fitou seu interlocutor nos olhos, recaindo sempre toda a sua atenção no samovar de prata, agora fumegante, pelo que interrogou:
- Acaso estarias interessado, em trocar teu belo samovar?
- Trocar pelo quê?
- Assim que me lembre, só tenho uma troika, que não carece de cavalo, nem qualquer outra besta de tiro.
Acicatado com proposta tão sui generis, Foma perguntou:
- Então se não tem precisão de besta essa troika, como se move então?
- Estás a ver a minha casa?
- Sim…
- Pois em vez de pernas de galinha, tem esta troika, incansáveis barbatanas de leão-marinho, que impelem os esquis pela neve – confiante de que estava a levar água ao seu moinho, a anciã ainda reforçou sua proposta – Se aceitares a troca, ainda te concedo um qualquer desejo!
Fascinado com o facto de puder vir a ser o proprietário de uma troika automóvel, o mancebo acedeu de imediato à tentadora proposta da baba Yaga, que preste fez surgir na sua frente o fenomenal veículo. Erguendo-se, acto contínuo, o rapaz foi inspeccionar o produto de seu negócio. A velha não mentira, de cada esqui, efectivamente, como que nasciam duas vigorosas barbatanas otarídeas:
- Então…, e como a faço andar?
- Basta que te sentes em cima dela.
- E para parar?
- Basta que te levantes de cima dela.
 Predisposto a experimentar imediatamente seu novo meio de transporte, Foma fez como a mulher disse; instalando-se confortavelmente em cima da troika, logo esta começou a dar às barbatanas com tenacidade tal, que se afastou a toda a brida da anciã, pelo menos, uma makhovaya sazhen. Apesar da má fama que tinha, de comer criancinhas mal-comportadas, a honestidade era uma virtude, como já vimos, que não minguava no carácter da baba Yaga, pelo que acelerou o seu almofariz até alcançar Foma, agora muito satisfeito, percorrendo a nívea estepe russa, como a sua adolescência. Voando ao lado da lépida troika, a avozinha gritou ao moço:
- Então e o desejo a que tens direito?
Sem sequer olhar para o lado, o moço respondeu:
- Quero um nenuco aleijado, para me fazer companhia nas longas viagens, que empreenderei de hoje em diante.




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